Título: Como reagir aos superávits da China
Autor: Wolf, Martin
Fonte: Valor Econômico, 30/05/2007, Opinião, p. A17

Qual é o mais importante diálogo de alto nível em economia internacional? A resposta não é a discussão entre ministros de Finanças do G-7, o grupo dos sete países de maior renda. A resposta é o "diálogo estratégico" entre a China e os EUA. E não porque este último produzirá respostas, mas porque ele formula a pergunta certa. O maior desafio na formulação de política econômica internacional é a inserção da China. Essa questão, Hank Paulson, o secretário do Tesouro dos EUA, para seu crédito, reconheceu. Seria preferível que o G-7 fosse substituído por um organismo multilateral que possa abordar estes temas de forma mais eficaz.

Para entender o desafio, precisamos analisar o que torna o impacto da China especial. Especialistas geralmente descrevem a globalização atual como a "segunda globalização", para distingui-la da "primeira globalização", ocorrida entre 1870 e 1914. Na era anterior, a potência em ascensão era os EUA, e o Reino Unido era de longe o mais importante exportador de capital do mundo. Mas a China agora está despontando tanto como a economia mais dinâmica do mundo como sua maior fonte de capital. Isso ajuda a explicar uma característica peculiar da nossa era: a combinação de desenvolvimento veloz com baixas taxas de juros.

O superávit em conta corrente da China explodiu nos últimos anos, de modestos US$ 46 bilhões em 2003 para US$ 250 bilhões no ano passado. Isso coloca o superávit de US$ 170 bilhões do Japão em 2006 na sombra. O superávit em conta corrente da China no ano passado foi de 9,5% do Produto Interno Bruto (PIB), mais que o dobro da mais alta correlação já alcançada pelo Japão, de 4,3% do PIB, em 1986. Se somarmos o saldo aos fluxos de capital de longo-prazo (investimento direto estrangeiro líquido), o superávit nos "balanços de pagamento básicos" da China atingiu 12% do PIB no ano passado.

Para colocar isso em contexto histórico, o investimento estrangeiro líquido no Reino Unido foi 8% do PIB entre 1905 e 1914. O que torna a posição da China ainda mais confortável é que o investimento interno bruto por si só parece ser de mais de 40% do PIB. Portanto, a China é a maior exportadora de capital do mundo e também detém a mais alta taxa de investimento interno como porcentagem do PIB. Isto é acúmulo de capital em larga escala.

A história, porém, não termina aqui. No caso da China, o governo tem sido a fonte direta de saída de fluxos de capital. Isto tem sido um subproduto das suas intervenções no mercado de câmbio, que visavam manter o yuan deprimido em relação ao dólar. Assim, entre 2003 e 2006, o país teve um superávit cumulativo em conta corrente de US$ 525 bilhões, junto com um ingresso líquido de US$ 228 bilhões em IDE. Esses valores foram quase perfeitamente eclipsados por seu acúmulo de US$ 777 bilhões em reservas cambiais oficiais. Até março deste ano, as reservas atingiram US$ 1.202 trilhão, as maiores do mundo e mais de 40% do PIB da China.

Os acúmulos de reservas não ocorrem, é preciso ressaltar, em reação aos ingressos de "dinheiro de curtíssimo prazo". Eles refletem uma política de despachar as divisas provenientes dos colossais superávits da balança comercial e dos ingressos de investimento de longo-prazo para manter a taxa de câmbio deprimida. Será este comportamento desejável e, se não for, o que deve ser feito a respeito?

-------------------------------------------------------------------------------- Enquanto os déficits da balança comercial dos demais países estiverem concentrados nos Estados Unidos, existirá o risco de uma ação protecionista --------------------------------------------------------------------------------

Um bom argumento pode ser colocado para a proposição de que este padrão de comportamento é realmente desejável. Ele é desejável para o resto do mundo, porque reduz as taxas de juros reais, permitindo, assim, mais gastos. Ele é desejável para a China, também argumentam alguns economistas, porque o crescimento veloz das exportações é a melhor maneira de gerar expansão econômica sustentável e maiores taxas de emprego.

Os argumentos contra o padrão, contudo, também são sólidos e, em minha opinião, ainda mais sólidos. Enquanto os déficits da balança comercial dos demais países estiverem concentrados nos EUA, existirá o risco de uma ação protecionista, particularmente no momento em que a economia deste último se desacelerar. Mais importante, é difícil acreditar que os vastos acúmulos de ativos estrangeiros de baixa rentabilidade, tão vulneráveis à quase inevitável desvalorização do yuan ante o dólar, fazem sentido para os próprios chineses. Realmente, a própria liderança chinesa tem declarado repetidamente a sua intenção de reequilibrar o crescimento, que nos últimos anos tem dependido indevidamente do crescimento do investimento e do superávit externo. Ao longo dos dois últimos anos, a expansão nas exportações líquidas gerou crescimento próximo de 25% do PIB. Isso não pode continuar por muito mais tempo. Em algum ponto, muito em breve, a demanda precisará crescer pelo menos no mesmo ritmo do PIB, se não mais rápido.

Num artigo recente que remete à reflexão ("China: Rebalancing Growth", www.petersoninstitute.org), Nicholas Hardy, do Peterson Institute for International Economics, em Washington, argumenta que a trilha do desenvolvimento atual tem muitas desvantagens evidentes para a própria China: o consumo doméstico é baixo demais, de meros 38% do PIB em 2005; o crescimento é excessivamente dominado pelas regiões costeiras; o crescimento da taxa de emprego foi de apenas 1% ao ano entre 1993 e 2004; o consumo de energia é alto demais; e a baixa taxa de juros internos que decorre, em parte, das intervenções cambiais, distorce o sistema financeiro e estimula investimento perdulário.

O que é preciso fazer, então? A resposta parece simples: economize mais e deixe a taxa de câmbio nominal se apreciar em ritmo mais veloz, para eliminar possíveis conseqüências inflacionárias desta mudança de política. O governo chinês pode facilmente se permitir gastar mais em Saúde e Educação. Ele também pode estabelecer proveitosamente um modesto sistema de pensão para os que estão vivos agora. Além disso, a maior parte das economias chinesas não se origina a partir das famílias, mas do governo e das corporações, cuja grande parte pertence ao próprio governo. Economias, portanto, são uma escolha política, não algo dado. A 50% do PIB, elas também parecem elevadas demais.

Como, então, poderá o mundo externo induzir a China a trilhar uma direção que parece fazer muito sentido para os próprios chineses? Paulson está muito certo em abordar essa questão como uma discussão de interesses mútuos. Mas será quase inconcebível que os chineses concordem com o que parecerão ser concessões unilaterais às demandas da "única superpotência". Isso seria vexatório demais.

Os chineses precisarão, em vez disso, participar como iguais num diálogo muito mais amplo entre os principais protagonistas econômicos. A atitude óbvia seria substituir o G7 por um grupo de quatro - os EUA, a zona do euro, Japão e China. Com o passar do tempo, sem dúvida, a Índia se filiará, mas seu tempo ainda não chegou. Um agrupamento destes, além disso, não deveria se concentrar unicamente na China. Ele deve considerar a gama de políticas adotadas nessas quatro economias dominantes. Paulson realmente aborda grande parte das questões corretas, porém num fórum estreito demais. Chegou a hora de ampliar o diálogo.