Título: A disputa pelo dinheiro do BNDES
Autor: Ricardo Balthazar
Fonte: Valor Econômico, 28/12/2004, Brasil, p. A2

De cada dez reais que as empresas brasileiras tomam emprestados na praça, três saem dos cofres do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Com um orçamento de R$ 61 bilhões previsto para o ano que vem, a instituição cobra juros menores do que os praticados no mercado e é a principal fonte de financiamento de longo prazo disponível no país. Tentativas de mexer na administração desse dinheiro costumam ser vistas com grande desconfiança no meio empresarial, e não é à toa que isso ocorre. Nos últimos meses, ganhou corpo no mercado financeiro a noção de que esses recursos poderiam ser aplicados de forma mais eficiente se sua gestão fosse entregue aos cuidados dos bancos privados. É uma idéia controversa, que parece ter conquistado adeptos dentro do governo e provocou seguidas explosões de fúria do economista Carlos Lessa nos dias derradeiros de seu período como presidente do BNDES, em novembro. Em sua versão mais recente, a proposta apareceu num estudo do economista-chefe do CSFB, Nilson Teixeira. Escrito por encomenda da Associação Nacional dos Bancos de Investimento (Anbid), o trabalho faz um balanço das reformas promovidas nos últimos tempos para estimular o mercado de capitais e sugere medidas para fazê-lo avançar. A transferência dos recursos do BNDES para gestores privados aparece no meio da lista. "O mercado de capitais brasileiro já é suficientemente maduro para gerir a poupança privada, sem necessidade de criação de fundos compulsórios administrados pelo setor público", escreveu Teixeira no estudo. "Os resultados fiscais recentes do setor público e o atual estágio de desenvolvimento do mercado de capitais brasileiro permitem que se discuta em maior extensão a gestão privada ao menos de parte desses fundos." O trabalho não diz claramente como essa mudança poderia ser feita, mas algumas sugestões foram debatidas em outubro, quando Teixeira apresentou pela primeira vez seu estudo num seminário fechado promovido pela Anbid e pelo Instituto de Estudos de Política Econômica da Casa das Garças, o discreto centro de debates fundado há um ano por um grupo de economistas ligados ao mercado e ao Departamento de Economia da Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio de Janeiro. O ex-diretor do Banco Central Ilan Goldfajn, um dos participantes do seminário, disse durante o debate que o dinheiro do BNDES poderia ser usado para financiar a transição para um regime previdenciário mais equilibrado, em que os trabalhadores acumulariam contribuições em contas individuais administradas por fundos de pensão, como no Chile. Ele admitiu que isso deixaria as empresas com menos recursos para investimentos num primeiro momento, mas argumentou que a medida se revelaria benéfica com o tempo.

Debate difícil ganha corpo no mercado e no governo

Teixeira e outro participante do debate, o ex-presidente do BC Persio Arida, defenderam a realização de leilões em que os recursos do BNDES seriam entregues aos bancos que prometessem emprestá-los com taxas menores que as praticadas pela instituição. A mesma proposta aparecera antes num artigo do economista Edward Amadeo, um dos sócios da consultoria Tendências. Na opinião deles, seria melhor que os projetos a serem financiados fossem escolhidos pelo mercado do que por burocratas sujeitos a pressões políticas e outros interesses. Arida também sugeriu uma alternativa mais brusca, em que as contribuições que hoje alimentam o Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), origem de grande parte dos recursos do BNDES, seriam simplesmente extintas. O dinheiro ficaria liberado para outros investimentos e o BNDES passaria a ter como receita apenas o retorno dos empréstimos já realizados. Teixeira e Arida também defenderam o fim do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), com a transferência gradual dos seus recursos para fundos administrados pelos bancos privados. Talvez seja muito cedo para prestar atenção nessa conversa, por enquanto uma discussão de caráter mais acadêmico do que prático. Mas os primeiros sinais de que ela é vista com simpatia no governo já apareceram. Em novembro, o presidente do BC, Henrique Meirelles, incluiu o BNDES entre os culpados pelos juros elevados praticados no Brasil e o Ministério da Fazenda anunciou estudos sobre as linhas de crédito dirigido que obrigam os bancos a emprestar para a habitação e a agricultura com taxas menores do que as cobradas em outros casos. Os empresários assistem a esses movimentos com apreensão. No início do mês, o Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (Iedi) publicou um trabalho sobre o assunto em que contesta os argumentos dos bancos. Para o Iedi, o BNDES e o crédito dirigido devem continuar existindo enquanto o mercado não se dispuser a financiar em condições razoáveis as atividades que essas linhas beneficiam. Entregar o dinheiro do BNDES aos bancos privados serviria apenas para aumentar os custos dos empréstimos feitos com esses recursos. O Iedi estima que haveria uma transferência anual de R$ 1,1 bilhão das empresas financiadas pelo BNDES para os bancos se de uma hora para outra todas as suas operações fossem repassadas ao mercado. Ao fazer essa conta, o Iedi supôs que os bancos buscariam retornos maiores para o FAT do que os garantidos pelo BNDES, uma maneira de justificar para a sociedade a entrega dos recursos para o setor privado. Para conseguir isso, argumenta o Iedi, os bancos precisariam cobrar taxas maiores que as do BNDES e mais próximas das praticadas no mercado. Não é uma discussão fácil. Alguns economistas imaginam que seria melhor usar o dinheiro do BNDES para arrumar as contas da Previdência, abater a dívida pública ou construir escolas para as crianças. Os empresários que se virassem para obter crédito em outro lugar. Mas não há nenhuma garantia de que o país ficaria melhor se um dia o BNDES fosse demolido e os bancos passassem a escolher livremente onde aplicar os recursos disponíveis para investimentos de longo prazo. Os interesses envolvidos são poderosos e o debate mal começou.