Título: Integração parcial
Autor: Sabadini, Tatiana
Fonte: Correio Braziliense, 25/12/2010, Mundo, p. 14

Especialistas apontam a união aduaneira e a expansão internacional como desafios para consolidar o Mercosul

A ideia era ampliar as dimensões dos mercados nacionais com uma grande e forte integração. Quando Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai decidiram assinar o Tratado de Assunção, em 26 de março de 1991, a realidade permitia o avanço dos objetivos colocados no papel. A prática se distanciou da teoria. Às vésperas de completar 20 anos, o Mercosul está cada vez mais a caminho de tornar-se um bloco político, sem deixar de lado as relações econômicas. Em entrevista ao Correio, especialistas apontaram as direções que o bloco deve seguir nas próximas décadas e opinaram como o governo de Dilma Rousseff pode fortalecer o grupo.

O Mercosul sobreviveu a crises internas e externas, passou por pelo menos cinco mandatos presidenciais dos quatro países, ganhou aliados e um potencial candidato a membro. A integração econômica serviu de pano de fundo para medidas como a livre circulação de cidadãos do grupo, a garantia de vistos trabalhistas e a aproximação política de seus líderes. Na semana passada, durante a 40° reunião do grupo ¿ o último evento internacional do presidente Luiz Inácio Lula da Silva ¿, foi criado o cargo de alto representante, que terá a incumbência de falar em nome do bloco nas negociações internacionais. Também se estabeleceu a padronização das placas de veículos dos países-membros até 2018.

O grupo sul-americano se aproxima, cada vez mais, dos padrões da União Europeia. A moeda única, no entanto, ainda não é unanimidade entre os quatro países. Para Sonia de Camargo, professora emérita de Instituto de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC), o processo foi natural. ¿É um caminho longo. A Europa faz isso há quase 60 anos e as coisas não acontecem de um dia para o outro. O Mercosul estava parado um certo tempo, mas é um destino certo para a América do Sul. A questão da integração é inevitável e toda a trajetória tem retrocessos e avanços. Nos próximos anos, o bloco regional vai ter que ser mais aprofundado¿, analisa a especialista.

Segundo Albene Míriam Menezes, professora do Departamento de História e coordenadora do Núcleo de Estudos do Mercosul na Universidade de Brasília (UnB), a dimensão política que o Mercosul assumiu não deixou a área econômica em segundo plano. ¿De fato, o bloco não se tornou um mercado comum, e muito teria que ser feito para ele se tornar-se um. Isso também depende da conjuntura e da economia internacionais. As relações continuam importantes em um momento diferenciado de crise da economia. Porém, se as alternativas de escoamento de produção forem fora dos parâmetros do grupo, o bloco se enfraquece. Os líderes precisam ficar atentos a isso¿, afirma.

O Brasil se mantém como o membro mais forte do Mercosul no âmbito internacional. No entanto, de acordo com Clodoaldo Bueno, co-autor do livro História da Política Exterior no Brasil e professor do Instituto de Estudos Econômicos e Internacionais da Universidade Estadual Paulista (Unesp), o país precisa ter pulso firme na América do Sul e abandonar a ¿diplomacia da generosidade¿. ¿Nós temos sido bonzinhos demais com os nossos vizinhos e não precisamos disso. Não existe favor em relações internacionais. O Brasil precisa ser mais rigoroso. Liderar a América Latina não significa ter perdas. Achar que o mais forte precisa conceder é um equívoco. Nossa imagem é de um parceiro fácil de ser convencido¿, diz.

Desavenças As relações entre os quatro membros do bloco sempre foram regulares. Porém, a Argentina é a protagonista de desavenças. Historicamente, o país não cumpre todos os acordos comerciais e já teve problemas recentes com Brasil e Paraguai em relação à entrada de produtos em seu território. ¿Eles sempre tiveram uma ideia mais pragmática do bloco, era um negócio, e nós pensávamos diferente. O Mercosul tem muitas das cláusulas não obedecidas pela Argentina, e o Brasil vai levando porque exportamos bastante para eles. Precisamos ser mais firmes e responder com barreiras com os nossos produtos¿, afirma Bueno.

O comércio no interior do Mercosul cresceu oito vezes em 17 anos. As trocas comerciais, que somavam US$ 10,5 bilhões em 1991, alcançaram US$ 86 bilhões em 2008. Raúl Bernal-Meza, professor de relações internacionais da Universidade de Buenos Aires, admite que a Argentina tem interesses mais amplos que os dos demais sócios. Para ele, o ideal seria que todos andassem pelo mesmo caminho. ¿Na última reunião, foi estabelecida uma nova data para a união aduaneira. No entanto, é preciso avançar em diversos aspectos para ratificar a confiança no processo integrador. O fundamental é que os países deem maior importância à inserção internacional. Essa opção está clara para a Argentina, mas não para o Brasil¿, analisa Bernal-Meza.

Para Lincoln Bizzozero, investigador do programa de política internacional da Universidade da República, em Montevidéu, a implementação da união aduaneira, que finalmente formaria o livre comércio regional, é o passo mais importante para o futuro do Mercosul. ¿Isso vai melhorar a negociação internacional. Em termos políticos, o bloco terá um papel importante no processo de integração sul-americana.¿

Duas décadas no papel

Principais medidas estabelecidas durante a 40ª Cúpula de Presidentes dos Estados Partes do Mercosul para os próximos 20 anos:

» Mercado comum Aperfeiçoar o Programa de União Aduaneira, a fim de promover um comércio livre entre os quatro países do bloco. A ideia original do Tratado de Assunção nunca saiu do papel.

» Alto Representante Geral Quem assumir o cargo será uma espécie de porta-voz do bloco, terá funções de articulação política e cumprirá um mandato de três anos. O projeto precisa ser aprovado pelos Congresso dos países-membros e não há indicação de como será feita a escolha do representante.

» Placa unificada Todos os veículos da região terão uma placa de identificação padrão para facilitar a movimentação entre os países e o cumprimento da lei. Caminhões e ônibus receberam as placas em 2016, e os demais, em 2018.

» Estatuto do Cidadão Deve ser ampliado, com a criação de uma cédula de identidade padrão para todos os países, o aperfeiçoamento dos direitos trabalhistas e a aproximação dos serviços de telecomunicações para baratear as tarifas de telefone e de celular dentro do Mercosul.

» Procurados na Justiça Pessoas procuradas pela Justiça poderão ser presas em qualquer país-membro. Bolívia, Equador, Colômbia e Peru participam do acordo.

Ingresso da Venezuela pode ser um risco O Mercosul pode ganhar mais um membro em breve. A votação no Congresso paraguaio é a última fase para a aprovação do ingresso da Venezuela no bloco. Argentina, Brasil e Uruguai já aprovaram a entrada de um novo país no grupo. A decisão, no entanto, divide especialistas. De um lado, existem as vantagens de se abrir uma nova rota comercial para o Mercosul em direção ao norte. Do outro, pesa a instabilidade econômica venezuelana, com taxas de câmbio variáveis controladas pelo presidente Hugo Chávez.

Para Albene Míriam Menezes, coordenadora do Núcleo de Estudos do Mercosul na Universidade de Brasília (UnB), a união com a Venezuela pode trazer vantagens para o Brasil. ¿É uma forma de inserir as questões amazônicas e o norte da América do Sul, o que pode ser bom para os estados brasileiros fronteiriços¿, explica. ¿É claro que os problemas internos do país podem afetar o bloco, mas a Venezuela não é somente o governo Chávez. É uma perspectiva, uma forma de abrir novos caminhos¿, admite a especialista.

A estabilidade econômica e cambial do Mercosul, no entanto, pode se ver ameaçada. Segundo Carlos Pio, professor de relações internacionais da UnB, a entrada da Venezuela poderia quebrar essa uniformidade. ¿Você tem uma economia com preços controlados pelo governo, com uma inflação muito mais alta. O presidente também pode manipular a moeda estrangeira. Então, a possibilidade de uma empresa brasileira fazer um contrato a longo prazo com os venezuelanos e achar que vai receber o valor total é quase nula. O prejuízo seria do Brasil, é claro¿, alerta Pio.

Permitir a entrada do governo Chávez seria um compromisso sério e desnecessário, de acordo com o professor da UnB. ¿O fato de um país ter problemas econômicos tão profundos afetará o resto do bloco. Isso poderia atrapalhar uma integração mais profunda, a longo prazo. Mas não quer dizer que o Brasil tenha que abrir mão das relações com a Venezuela, basta democratizar o comércio¿, afirma Pio. Negócios à parte, a decisão definitiva sobre a entrada venezuelana no Mercosul continua no impasse no Senado paraguaio. Apesar de alguns parlamentares garantirem que a pauta pode ser votada antes de o ano acabar, é bem provável que a votação seja em 2011. (TS)