Título: "Denúncias servem a rearranjos de poder"
Autor: Felício, César
Fonte: Valor Econômico, 28/05/2007, Especial, p. A14

A América Latina é um berço de escândalos de corrupção, não por falhas de qualidade de sua representação política ou de suas instituições democráticas, mas porque a simples denúncia de um ato de corrupção tornou-se um instrumento na guerra por poder dentro das coalizões governistas. A partir deste pressuposto, o pesquisador da Universidade de Austin, Texas, Manuel Balán, prepara em sua tese de doutorado uma análise comparativa dos escândalos brasileiros com os da Argentina, seu país natal, e os do Chile.

Em sua pesquisa, Balán analisa 60 escândalos, a grande maioria envolvendo corrupção, que ocorreram no Brasil, Argentina e Chile entre 1990 e 2007. Estuda as administrações de Fernando Collor, Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva no Brasil; Carlos Menem, Fernando de la Rua, Eduardo Duhalde e Nestor Kirchner na Argentina e Patricio Aylwin, Eduardo Frei, Ricardo Lagos e Michelle Bachelet no Chile. De passagem pelo Brasil, para a coleta de depoimentos, concedeu a seguinte entrevista ao Valor:

Valor: O senhor afirma que, a imprensa e a sociedade civil são usados como instrumentos de uma batalha política dentro da coalizão governista no qual os escândalos de corrupção são amplificados. Mas a própria denúncia de corrupção não se torna um instrumento na disputa de poder?

Manuel Balán: A denúncia da corrupção é um mecanismo para manejar a percepção popular sobre uma determinada figura e permitir rearranjos de poder. Há uma idéia dominante hoje de que instituições como a mídia, os órgãos da sociedade civil, o Judiciário,que garantem a accountability, ao funcionarem em uma sociedade democrática, trazem os escândalos à tona por meio de uma vigilância cada vez maior e sofisticada. Mas a minha hipótese é que todos os escândalos de caráter nacional estão mais relacionados com as dissensões internas das elites política e econômica, que buscam o que se chama de reshuffle no idioma inglês, algo como "rearranjo" ou "reequilíbrio". Busca-se o rearranjo de poder ou de influência.

Valor: Como o caso brasileiro exemplificaria isso?

Balán : Você tinha no Brasil até 2005 um sistema de equilíbrio de poder dentro da coalizão de Lula que foi mudado com o escândalo do mensalão, em razão das tensões internas. É sempre um movimento interno que detona um grande escândalo de corrupção. O escândalo proporcionou uma troca do sistema de poder. Antes do escândalo, havia a presença maior do PT e de partidos como PTB e PR, e uma presença menor do PMDB em relação à que se criou depois. Houve então o rearranjo. Agora o PMDB cresceu muito e é de se notar o fato deste partido estar no centro do escândalo da Operação Navalha. Veja que a primeira vítima foi um ministro do PMDB (Silas Rondeau, Minas e Energia). A Operação Navalha, que nasce dentro do governo, pode provocar um novo rearranjo, com a diminuição do poder do PMDB.

Valor: O Brasil é um país mais corrupto que a média latino-americana?

Balán: O Brasil, assim como a Argentina, é um país onde a percepção de corrupção é muito alta, como procuram medir organizações não-governamentais como a Transparência Brasil. Mas o que procuro analisar é a corrupção que se converte em escândalo. O fato de o Brasil ser um país com muitos escândalos de modo algum significa que seja um país mais corrupto que outros. Quer dizer apenas que aqui o sistema de poder se organiza de tal maneira que favorece o uso da denúncia como instrumento político. Isto não é uma particularidade brasileira. Convencionou-se pensar que o Chile é um país com percepção de corrupção menor que a de Brasil e Argentina, mas os escândalos que aconteceram na administração de Michelle Bachelet e do antecessor Ricardo Lagos tiveram grande impacto na sociedade. Face às personalidades envolvidas e os valores movimentados, seriam ignorados, por insignificantes, na Argentina e no Brasil, onde as denúncias constantemente atingem o coração do poder. Existe uma diferença de escala nas denúncias, mas o uso político dos escândalos é idêntico.

Valor: Que fato recente exemplificaria isso?

Balán: Um caso é o do MOP-GATE. MOP é Ministério de Obras Públicas e GATE é a sigla de uma empresa, a Gestión Ambiental y Territorial. Foi o maior escândalo de corrupção no Chile desde a redemocratização. Era um esquema de fraudes em licitações com propinas para funcionários públicos e parlamentares, semelhante ao caso da Operação Sanguessuga. Ocorreu no governo de Ricardo Lagos. Envolveu cinco deputados do grupo dominante, a Concertación, e alguns funcionários de baixo escalão. Não havia ministro envolvido e nem deputados com função de liderança. O MOP-GATE abalou Lagos de tal modo que mudou o equilíbrio interno dentro da Concertación e revitalizou a oposição chilena. O impacto sobre a popularidade de Lagos foi devastador. Resumindo, é impossível avaliar se a corrupção é maior ou menor no Brasil, no Chile ou na Suécia. O que é universal é o escândalo. Determinadas circunstâncias criam o uso da denúncia da corrupção como arma política.

Valor: Quais são estas circunstâncias?

Balán: É importante lembrar que nem todos os escândalos dizem respeito à corrupção. Na esfera política, os escândalos em geral têm duas naturezas: a de corrupção e a de conotação sexual. Por vezes, estes dois aspectos se fundem em um caso só. Para um escândalo de corrupção acontecer, em primeiro lugar, é preciso que a denúncia traga elementos de verdade, que lhe garanta credibilidade. Depois há fatores exógenos e endógenos ao sistema de poder que criam um ambiente propício para os escândalos de corrupção se multiplicarem: Entre os primeiros, é preciso instituições como imprensa livre, relativamente independente do governo e autônoma em relação ao poder econômico e uma oposição forte e coesa. São as estruturas de propagação do escândalo junto à opinião pública. Entre os fatores endógenos, está a fragmentação do grupo governista , sobretudo quando há divergências ideológicas graves entre os diversos setores. Uma circunstância conjuntural que aumenta a propagação de escândalos são políticas de redução do tamanho do Estado.

Valor: Porque governos que reduzem a máquina estatal estão mais sujeitos a escândalos?

Balán: O processo de privatização aumenta a intersecção entre as esferas pública e privada e a corrupção é exatamente o uso do cargo público para conseguir benefícios privados. Abre-se uma janela de oportunidades para fazer negócios. Houve países em que as privatizações foram feitas com mais transparência para as instituições de controle e houve outros com menos transparência, o que particularmente foi o caso da Argentina no governo Menem. E há outro fator: com as privatizações, diminui-se a quantidade de cargos disponíveis para o rateio às diversas forças políticas. Esta redução de cargos faz aumentar o nível de competição das forças partidárias pelos postos restantes na estrutura estatal. Os recursos para obras também diminuem. Isto contribui para tornar vulneráveis as coalizões governistas.

-------------------------------------------------------------------------------- As privatizações aumentaram a competição por menos cargos e tornaram mais vulneráveis as coalizões de poder" --------------------------------------------------------------------------------

Valor: A corrupção está presente em todo sistema democrático? É o preço que se paga por não se viver em uma ditadura, como alguns crêem?

Balán: O que se pode dizer com certeza é que os escândalos de corrupção são inerentes ao regime democrático. Na ditadura de Jorge Videla na Argentina, houve menos escândalos de corrupção do que no governo Menem porque não havia imprensa livre, sociedade civil organizada, oposição legalmente constituída, disputas eleitorais e grupos em competição aberta pela hegemonia política. A história mostrou posteriormente que o governo Videla não prestava contas para ninguém e a corrupção fazia parte de sua natureza, como em todas as ditaduras.

Valor: O senhor escreve que os escândalos de corrupção no governo Fernando Henrique Cardoso provocaram menos rearranjos do que os que acontecem no governo Lula. Por que?

Balán: Por enquanto tenho uma hipótese não testada. Penso que o governo passado teve mais sucesso em conciliar os interesses entre os diversos grupos em disputa dentro do bloco hegemônico. Conseguiu-se também enfraquecer a oposição, ao estabelecer uma aliança com parte da mídia. Desenvolveu-se ainda uma relação melhor com a oposição, visível em casos como o do dossiê Cayman, uma denúncia não assumida pela oposição. Em relação ao governo do PT, é preciso notar que Lula elegeu-se gerando a expectativa de que mudaria os métodos de se fazer política no País. Lula teve no primeiro mandato uma base menos coesa que a de Fernando Henrique. Isto tornou sua imagem muito mais vulnerável a escândalos de corrupção do que o observado em outros governos. É algo que o aproxima da situação que viveu Fernando de la Rúa na Argentina.

Valor: Como assim?

Balán: De la Rúa sucedeu Menem, um governo onde as divisões internas do Partido Justicialista e a política acelerada de privatizações favoreceu o aparecimento de muitos casos de corrupção. A oposição a Menem conseguiu então unir grupos absolutamente opostos do ponto de vista ideológico, usando a bandeira contra a corrupção para se eleger. Sua base heterogênea fez com que viesse à tona um escândalo de contornos semelhantes ao do mensalão, envolvendo o Senado argentino e provocando a renúncia do vice-presidente Chacho Álvarez. De la Rúa tornou-se um presidente maculado para sempre.

Valor: O que explica Lula ter sido afetado por mais escândalos do que Nestor Kirchner na Argentina?

Balán: Kirchner está passando agora pelo primeiro escândalo de sua administração, a denúncia de pagamento de propinas por parte da empresa Skanska, mas se blindou por três anos quando diminuiu muito a disputa política dentro do seu grupo. É um presidente que não reúne seu ministério e muito menos conversa com líderes políticos conjuntamente. Forte no seu grupo é a sua família e os ministros Julio de Vido , Anibal Fernandez e Alberto Fernandez, o resto é soldado raso Menem tinha uma constelação de "estrelas" em seu governo disputando poder. De la Rúa tinha uma aliança com radicais diferenças ideológicas. Outro fator que desfavorece escândalos no caso de Kirchner é a oposição: ela não é forte e coesa como a do Brasil e a do Chile, mas menor e absolutamente fragmentada. Além disso, o crescimento econômico sempre é um amortecedor, como se percebeu também no Brasil. Mas existe uma fricção entre os ministros e o caso argentino já está provocando um rearranjo: determinadas incumbências do ministério de Vido (Planejamento) passaram para o de Alberto Fernandez (Casa Civil).

Valor: Você se pergunta em seu trabalho se a onda de escândalos de corrupção que se registra na América Latina há quinze anos é sinal de vulnerabilidade dos arranjos da democracia ou se os mecanismos de controle democráticos estão em pleno funcionamento. Qual a sua resposta afinal ?

Balán: Há escândalos que mostraram vulnerabilidade da democracia, como o caso do mensalão no Brasil ou o da compra de votos no Senado argentino no governo De la Rúa. Há outros que mostram a sanidade dos mecanismos de controle, como a Operação Navalha, se é que podemos considerar a Polícia Federal uma instituição independente. O que todos os casos mostram é o uso político destas situações.

Valor: No caso da Operação Navalha, a iniciativa partiu do Executivo. Como isto se concilia com a tese de que o elemento motivador para um escândalo de corrupção é a disputa interna dentro da aliança do governo?

Balán: Não podemos afirmar nada de maneira taxativa, porque o escândalo de agora está em curso, mas concordo com a tese de que Lula tem uma coalizão grande, mas diversificada. Aumentou a coesão em relação ao primeiro mandato, em torno de um PMDB fortalecido e você pode pensar na probabilidade de que isso é a busca de um rearranjo para diminuir a força do PMDB. Alguém com certeza vai lucrar com isso.

Valor: Pode-se produzir uma situação em que Lula seja forçado a fazer algo que no fundo desejaria, que é reduzir a força do PMDB?

Balán: Obviamente não é possível afirmar que este é o caso com as informações existentes até agora. Mas esta é uma dinâmica absolutamente comum na política: vários governantes na América Latina foram forçados a fazer exatamente o que queriam que acontecesse.