Título: Paradoxos das buscas e apreensões da SDE
Autor: Smith,
Fonte: Valor Econômico, 28/05/2007, Legislação & Tributos, p. E2

Recentemente, tem sido freqüente o uso de medidas cautelares de busca e apreensão pela Secretaria de Direito Econômico (SDE) do Ministério da Justiça visando reunir indícios ou provas de infração contra a ordem econômica, especialmente de formação de cartéis. Não raro, o cumprimento de mandados de busca e apreensão desta natureza é acompanhado de um enorme aparato policial, amplamente retratado nos principais meios de comunicação, o que agrava ainda mais a situação dos requeridos dessas cautelares, já bastante abalada pela minimização de direitos e garantias fundamentais que decorre do seu cumprimento. Intuitivo, pois, tratar-se de uma medida excepcional e traumática a exigir especial prudência e bom senso das autoridades com ela envolvidas.

Este artigo convida a uma reflexão sobre o uso dessa medida pela SDE, especialmente nos casos em que ela é requerida antes mesmo da instauração de um processo administrativo como instrumento de coleta de indícios capazes de autorizá-lo. Esta possibilidade está prevista no artigo 35-A da Lei de Defesa da Concorrência - a Lei nº 8.884, de 1994 -, pelo qual a Advocacia-Geral da União (AGU) pode requerer ao Poder Judiciário a busca e apreensão de objetos, papéis, livros comerciais, computadores e arquivos magnéticos de empresa ou pessoa física para instruir procedimentos, averiguações preliminares ou processos administrativos. As averiguações preliminares dispostas na Lei nº 8.884 são promovidas pela SDE "quando os indícios de infração à ordem econômica não forem suficientes para a instauração de processo administrativo".

Por sua vez, o artigo 798 do Código de Processo Civil (CPC), aplicável a toda e qualquer medida cautelar, dispõe que o juiz só a determinará "quando houver fundado receio de que uma parte, antes do julgamento da lide, cause ao direito da outra lesão grave e de difícil reparação". Ou seja, é imprescindível a presença dos requisitos do "fumus boni iuris" e do "periculum in mora" para deferimento de qualquer cautelar.

Neste ponto reside o primeiro paradoxo da busca e apreensão em sede de averiguações preliminares: se essa averiguação é promovida na ausência de indícios suficientes para instaurar um processo administrativo, como pode justificar o requerimento de uma cautelar que requer o "fumus boni iuris" para ser deferida?

-------------------------------------------------------------------------------- A previsão legal destoa do nosso ordenamento jurídico e não resiste a um confronto com a Constituição Federal --------------------------------------------------------------------------------

Segue-se a ele o segundo paradoxo, qual seja, a violação dos princípios constitucionais. A expedição de um mandado de busca e apreensão implica na minimização de garantias constitucionais fundamentais, como a inviolabilidade do domicílio, o direito à privacidade (incluindo segredos comerciais e industriais) e a inviolabilidade da correspondência e das comunicações. Como ocorre antes mesmo de existirem indícios suficientes para a instauração de um processo administrativo, há, neste procedimento, uma lógica inversa: a de que os investigados são culpados e, portanto, devem sofrer tal medida para viabilizar às autoridades a prova de sua culpa.

Esta inversão é ainda mais perniciosa quando se sabe que a execução de medidas desta natureza, intentadas contra empresas idôneas, é geralmente anunciada com grande alarde pela mídia, de modo que suas vítimas são julgadas culpadas e condenadas pela opinião pública antes mesmo de terem oportunidade de defender-se, com grave dano à imagem da empresa e aos seus negócios. Assim, o princípio constitucional do devido processo legal, corolário das garantias do contraditório e da ampla defesa e uma das vigas mestras de qualquer Estado democrático, é igualmente afrontado.

Isso nos leva ao terceiro paradoxo: a falta de harmonização de princípios constitucionais. É cediço que sempre que existir conflito entre os mesmos deve-se aplicar o princípio da proporcionalidade e da razoabilidade para saná-lo, flexibilizando-se um princípio a favor do outro. Assim, se por um lado a repressão ao abuso do poder econômico e a proteção da livre concorrência são valores constitucionais que devem ser protegidos, por outro os direitos e garantias fundamentais dos cidadãos não podem ser desconsiderados para a tutela desses valores.

Não se justifica a flexibilização do direito ao contraditório e à ampla defesa para a proteção da livre concorrência quando é perfeitamente possível aguardar-se a instauração de um processo administrativo e a defesa dos acusados para, só então, e havendo necessidade, se recorrer à busca e apreensão. Isto porque, se houvesse de fato evidências contundentes de uma infração à ordem econômica a reclamar uma pronta reação das autoridades, haveria indícios suficientes para instaurar imediatamente um processo administrativo, dispensando-se averiguação preliminar.

Em conclusão, muito embora a utilização de medidas de busca e apreensão em sede de averiguações preliminares encontre previsão legal, o artigo 35-A da Lei nº 8.884 destoa do nosso ordenamento jurídico e não resiste a um confronto com a Constituição Federal ao contrariar, entre outros, os princípios do devido processo legal e da presunção de inocência. Ainda que, até hoje, devido ao pouco tempo decorrido desde as primeiras medidas, nenhum caso tenha chegado ao Supremo Tribunal Federal (STF) para uma avaliação da constitucionalidade de medida - o que provavelmente não tardará a ocorrer -, entendemos que a única interpretação conforme a Constituição Federal seria a de que o emprego de tais medidas só é admissível após a instauração de um processo administrativo e o exercício do direito de defesa pelos investigados.

Ana Carolina P. Couri Smith é advogada e sócia das áreas de direito civil, comercial e do consumidor do escritório Franceschini e Miranda Advogados

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