Título: Japão precisa romper com passado
Autor: Guy de Jonquieres
Fonte: Valor Econômico, 28/12/2004, Opinião, p. A11

Retornando recentemente ao Japão, após ter visitado regularmente o país até oito anos atrás, estava preparado para mudanças. Cheguei esperando encontrar uma economia virada de cabeça para baixo por uma convulsão de longo alcance. Mas deixei o Japão com uma curiosa sensação de "déja vu". Indubitavelmente, ondas de choque abalaram o cenário econômico. Empresas industriais cortaram custos e implementaram programas de reengenharia. Assalariados em empregos vitalícios - no passado, a guarda pretoriana do contingente de mão-de-obra japonês - tornaram-se uma espécie em risco de extinção. A inadimplência obrigou a adoção de drásticas medidas de contenção de gastos e consolidação no sistema bancário, e algumas empresas travaram conhecimento com o fenômeno da aquisição hostil. As sobreviventes dessa turbulência estão mais enxutas e mais bem adaptadas. Muitos fabricantes japoneses reforçaram sua liderança mundial de mercado melhorando eficiência, gerenciamento e vitalidade tecnológica. Mas boa parte do trabalho consistiu em podar galhos podres, e não no plantio de novas mudas. O país é como um aluno de Joseph Schumpeter, que domina o processo de destruição econômica, mais ainda precisa aprender a tornar o processo criativo. As companhias japonesas, hoje bem-sucedidas internacionalmente, estavam, todas, à frente de competidoras mundiais 20 anos atrás, e nos mesmos setores - predominantemente eletrônico, mecânico e de engenharia de precisão. A principal diferença é que as vítimas empresariais emagreceram essas fileiras. Surgiram poucas novas estreantes vigorosas, para tomar o lugar das que tombaram ou para abrir novos mercados. As mais comentadas histórias de sucesso empresarial, como as do Softbank e do florescente setor de jogos de computador e de animação, têm, todas, cerca de 20 anos de idade. Hoje, o Japão continua, como sempre, dividido em duas economias. Uma delas, o setor exportador com elevado desempenho, é habitado por superestrelas empresariais mundiais; a outra é constituída pela agricultura e por uma multidão de freqüentemente pequenas empresas de serviços, que operam em um mercado doméstico em larga medida protegido da competição estrangeira e infestado de restrições. A maioria delas exibe, em comparação com as equivalentes americanas, uma produtividade irrisória. Com o crescimento em queda, as exportações para a China deixando de crescer, o dólar em declínio e a escassa margem de manobra para estímulos monetário e fiscal adicionais, as esperanças de uma recuperação japonesa repousam, cada vez mais, na energização da flácida "outra economia" do país por meio de microrreformas. Como reconheceu o governo, elas são uma das poucas opções que restam. Para crédito do atual governo, Junichiro Koizumi fez mais do que seus predecessores no sentido de promover uma desregulamentação, tendo lançado, desde 2001, uma série de medidas, desde reduções nos custos de abertura de empresas estreantes até o estabelecimento de zonas econômicas especiais com branda regulamentação.

As mais comentadas histórias de sucesso empresarial, como as do setor de jogos de computador e de animação, têm cerca de 20 anos de idade

Mas os resultados, até agora, são erráticos, e as perspectivas, indefinidas. Koizumi pode estar pessoalmente comprometido com os programas, mas não será primeiro-ministro eternamente, e como salientou a Organização para Cooperação Econômica e Desenvolvimento (OCDE), sua eficácia depende de manter o empenho político num longo prazo mais dilatado. De qualquer forma, a recente redução do número de participantes no mercado empresarial japonês foi desencadeada mais por uma percepção de crise iminente do que por iniciativas ou diretivas oficiais do governo central. À medida que as lembranças dessa crise se dissiparem, poderá enfraquecer-se o ímpeto das reformas. Qual poderá ser a fonte de um ímpeto renovado? Curiosamente, uma das alavancas mais promissoras poderá se apoiar em um dos maiores desafios de longo prazo para o Japão - as mudanças na demografia. Assim como em outros países ricos, a crescente procura por serviços médicos e outros, demandados por uma população em rápido envelhecimento, associada a um encolhimento do contingente de mão-de-obra, ameaça ultrapassar a capacidade estatal de oferta nessas áreas. James Kondo, da Universidade de Tóquio, acredita que essas forças impulsionarão o país a buscar maneiras mais inovadoras e eficientes de prestação desses serviços, criando grandes oportunidades para o setor de provedores privados. Já há sinais, diz ele, de que o poder dos médicos japoneses de resistir a tais tendências está ruindo, em face de crescente insatisfação e exigências de mudanças por parte do público. Mudanças mais sutis em atitudes sociais poderão acentuar a tendência. Desde que os arquitetos da restauração Meiji derrubaram a ditadura militar do Japão, 150 anos atrás, e partiram para uma modernização do país, o povo foi movido por objetivos compartilhados. Durante quase 50 anos após a Segunda Guerra Mundial, o objetivo nacional transcendental foi industrialização e reconstrução econômica: o "homo japonicus" vivia para trabalhar. Hoje, as pesquisas sugerem que o objetivo, ao menos dos habitantes mais ricos das cidades, é exatamente o oposto: relaxar mais e desfrutar a vida. Se os japoneses aderirem de fato à classe devotada ao lazer, as conseqüências econômicas poderão ser de longo alcance. Tal mudança desencadearia uma demanda por toda uma gama de novos serviços ao consumidor, ampliando o leque de opções de passatempos populares para bem mais do que apenas karaokê, turismo e golfe. Reconhecidamente, essas são soluções de grande risco, mas prometem, igualmente, grandes recompensas. Entretanto, esforços de rompimento com o passado têm maiores probabilidades de êxito quando sintonizados com o fluxo de demanda e aspirações da opinião pública. Tendo em vista os dilemas econômicos com que se defronta o Japão, as alternativas não parecem mais promissoras.