Título: Remédio caro em relação à Índia desafia indústria local
Autor: Landim, Raquel
Fonte: Valor Econômico, 25/05/2007, Brasil, p. A3

Aos 44 anos, a professora Maria Aparecida Lemos decidiu mudar de carreira e, como gostava de viajar, fez um curso de turismo. Mas seus planos foram bruscamente interrompidos pela descoberta de que tinha sido contaminada com o vírus HIV durante um namoro de dois anos e meio. Em 2001, ela perdeu para sempre a visão, atacada por uma doença que se instalou em seu organismo graças a baixa imunidade causada pela aids.

Hoje, aos 52 anos, Cida, como prefere ser chamada, viaja o mundo. Esteve em Nova York, representando o Brasil na Organização das Nações Unidas (ONU). Nas próximas semanas, vai a Salvador para um congresso do Movimento de Cidadãs PositHIVas. Ela conta que é independente: mora sozinha em um apartamento no Rio de Janeiro e tem um "paquera". Para dar conta do agitado dia-a-dia, utiliza três "armas secretas", que "enganam" o vírus e impedem sua multiplicação: dois comprimidos de Lamivudina e um de Tenofovir de manhã e um comprimido de Efavirenz à noite. "Meus remédios são parceiros, companheiros", diz.

A Lamivudina é fabricada no Brasil, enquanto os outros medicamentos, mais modernos, são importados das farmacêuticas detentoras das patentes. Todos são distribuídos gratuitamente nos postos de saúde, o maior mérito do programa brasileiro contra a aids desde uma lei aprovada em 1996. O tratamento de Cida com a Lamivudina custa aos cofres públicos US$ 214 por paciente/ano. Se esse remédio fosse importado da Índia, que o produz em larga escala, sairia por US$ 51 por paciente/ano. Nesse caso, o preço nacional é 320% mais alto que o indiano.

Dos 17 medicamentos entregues pelo governo hoje aos 180 mil pacientes em tratamento contra a aids, oito são produzidos no país. Na comparação dos gastos com cada paciente por ano, o tratamento com drogas nacionais fica entre 140% e 360% mais caro que com o mesmo remédio feito na Índia, conforme levantamento do Valor com base nos dados do Ministério da Saúde e do guia de preços da organização não-governamental Médicos Sem Fronteiras. A maior parte dos dados considera os medicamentos indianos pré-qualificados pela Organização Mundial de Saúde. Sem esse filtro, a diferença seria ainda maior.

O programa brasileiro de combate a aids vive hoje o paradoxo de colher elogios ao redor do planeta, enquanto a indústria nacional desses medicamentos é pouco desenvolvida. A diferença de preços entre Brasil e Índia abre uma discussão sobre a competitividade da produção de anti-retrovirais no Brasil, que foi pioneiro e começou a fabricar a Zidovudina (AZT) no início da década de 90. Hoje, as indústrias brasileiras operam com baixa escala, voltadas para o mercado interno e inovam pouco. A pergunta é: essas empresas sobreviverão à concorrência das múltis e de países fabricantes de genéricos, cada vez mais competitivos?

"A indústria é pequena, voltada para o atendimento público. Mas a produção nacional é estratégica", defende Mariângela Simão, diretora do programa nacional DST-aids, do Ministério da Saúde. "A indústria brasileira perdeu o bonde da história", critica Gabriel Tannus, presidente da Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa (Interfarma). No Brasil, cinco laboratórios públicos (Farmanguinhos, Lafepe, Furpe, Lifal e Iquego) e um privado (Cristalia) produzem remédios similares anti-aids.

O programa brasileiro de combate à doença está atingindo níveis insustentáveis para o orçamento público. O custo subiu de R$ 346 milhões em 1998 para R$ 987 milhões em 2006. E a curva é ascendente. "A cada ano surge uma nova droga, mais cara e protegida por patente", diz Mariângela. Após algum tempo, os doentes se tornam resistentes ao tratamento e precisam de medicamentos modernos, que também provocam menos efeitos colaterais. Esses remédios são mais caros, devido aos gastos em pesquisa.

Apesar da Zinovudina e da Lamuvidina serem a base do tratamento e chegarem a 110 mil pacientes, a produção nacional, que está restrita aos remédios mais simples, significa 20% dos custos do programa. Os medicamentos importados representam 80% do total. Por isso, o governo optou pela licença compulsória do Efavirenz e por negociar o preço do Kaletra. Segundo Mariângela, substituir os medicamentos nacionais por importados indianos alteraria pouco o quadro.

Quando o programa brasileiro surgiu, a produção nacional de remédios foi importante para baixar o custo do tratamento. Ao fabricar Didanosina e Lamivudina, os laboratórios ofereceram esses medicamentos ao governo por um preço 70% mais baixo que o das múltis na época. O problema é que o custo dos remédios nacionais caiu pouco ao longo do tempo, quando comparado com a Índia. Entre 2000 e 2006, os preços dos remédios brasileiros contra a aids cederam, em média, 40%. No ano passado, graças à alta do custo do princípio ativo, matéria-prima para os medicamentos, chegaram a subir entre 3% e 4,5% ante 2005.

Eduardo de Azeredo Costa, diretor de Farmanguinhos, reconhece que os laboratórios nacionais enfrentam dificuldades para reduzir os preços. Ele explica que a maior parte dos princípios ativos é importada da Índia ou China. "E a Índia nos vende quase pelo preço do produto acabado", diz. A qualidade do princípio ativo também deixa a desejar, elevando os custos totais. Outro problema é a baixa escala de produção, já que o Brasil está voltado para o mercado interno, enquanto a maior demanda está na África e na Ásia.

As indústrias farmacêuticas de Brasil e Índia começaram praticamente juntas na década de 80, mas percorreram caminhos distintos. Em 1994, no fim da Rodada Uruguai, da Organização Mundial de Comércio, os países assinaram o Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (Trips), que obrigou as nações em desenvolvimento a reconhecer patentes para medicamentos.

O Brasil promulgou a lei das patentes em 1996, com efeitos retroativos, acertando em cheio a produção de anti-retrovirais, que surgiu na década de 90. "A Índia é competitiva porque investiu em tecnologia. Enquanto o Brasil, apressada e equivocadamente, abriu mão", diz Reinaldo Guimarães, secretário de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde. O acordo da OMC garantia aos países dez anos para a adaptação. A Índia aproveitou esse prazo e apoiou sua indústria farmacêutica. "É uma indústria de cópias, com poucas restrições ambientais e encargos trabalhistas", diz Tannus, da Interfarma. A Índia responde hoje por metade dos medicamentos anti-aids consumidos nos países pobres.

Os laboratórios indianos são tão competitivos que vendem seu coquetel anti-aids abaixo do menor preço das farmacêuticas nos países mais carentes da África. As empresas cobram preços diferentes conforme o poder aquisitivo do país. Para os africanos, o custo do tratamento por paciente/ano com os remédios mais simples das múltis fica entre 30% e 100% mais alto do que se os medicamentos fossem adquiridos na Índia. Para as ONGs, a produção indiana reduz os preços mundiais e é fundamental para o tratamento da aids na África Subsaariana, que concentra 62% das 39,5 milhões de pessoas infectadas com o vírus no mundo.

Três empresas indianas estão prestes a atingir escala global: Cipla, Ranbaxy e Dr Reddy's. O faturamento dos 15 maiores laboratórios farmacêuticos do país subiu 20% por ano entre 1996 e 2004. As exportações de remédios saíram de US$ 536 milhões em 1990 para US$ 3,2 bilhões em 2004. Em 2005, a Índia reconheceu o Trips, mas seu Congresso colocou na lei um dispositivo que dificulta o processo. Na Índia, não são concedidas patentes para remédios que sejam combinações ou novas formulações de moléculas conhecidas.

O Valor tentou comparar os preços dos remédios fabricados no Brasil com o que é cobrado pelas multinacionais. A dificuldade é que as farmacêuticas não vendem esses medicamentos no país, que, nesses casos, compra apenas dos laboratórios estatais. A comparação deveria ser feita com países de poder aquisitivo similar, como o México. Mas a indústria não informou o custo desses remédios em outros países.

Para Michel Lotrowska, dos Médicos Sem Fronteiras, a produção brasileira foi o "pilar" da implantação do programa de aids no Brasil, porque garantiu abastecimento em uma época que não existia a indústria global de genéricos. Gabriela Chávez, do MSF, e Renata Reis, da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (Abia), defendem que a produção brasileira garante a sustentabilidade do programa no longo prazo e o poder de barganha do governo nas negociações com as farmacêuticas.

Na Índia, que produz remédios em escala global, estima-se que 1 milhão de pessoas necessitem de tratamento contra a aids, mas apenas 10 mil estão medicadas. O Brasil atende 100% dos pacientes que precisam de remédios, o que representa 28% das 600 mil pessoas infectadas. A abrangência do programa brasileiro impressiona em termos globais. Enquanto o país representa 1,6% das pessoas infectadas com o vírus, seu programa atende 24% dos pacientes em tratamento no mundo. Resta saber se é economicamente sustentável, para garantir a sobrevivência e o bem-estar de pessoas como Cida nos próximos anos.