Título: Colher de chá para Dilma
Autor: Silveira, Igor
Fonte: Correio Braziliense, 28/12/2010, Política, p. 2

Fiel ao discurso de "desencarnar do cargo", Lula aproveita café da manhã com jornalistas do Planalto para avaliar o mandato e enfatizar que sua candidata para 2014 só não será a presidente eleita se ela não quiser

¿Tenho consciência de que mudei a relação do Estado com a sociedade e do governo com os movimentos sociais.¿ A menos de uma semana de deixar o governo, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva já fala em tom de autoavaliação dos oito anos de mandato, apesar de dizer que precisa de tempo para fazer um balanço fiel da gestão. Parecendo à vontade enquanto ¿desencarna do cargo¿ ¿ expressão que tem usado com frequência ¿, ele se reuniu ontem com jornalistas do comitê de imprensa do Palácio do Planalto para um café da manhã. Estava tão à vontade que mexeu com um garfo o açúcar na xícara de café, passou manteiga num pãozinho enquanto respondia a uma pergunta e tratou de assuntos espinhosos com naturalidade, como o reajuste do salário mínimo, a permanência de Cesare Battisti no Brasil e projeções para o governo de Dilma Rousseff.

Evitando palpites sobre os próximos passos da sucessora, rechaçou a possibilidade de voltar em 2014. ¿Só existe uma hipótese de ela não ser candidata em 2014: ela não querer¿, afirmou. O ar saudosista está em quase todas as respostas, mas o presidente mantém o mistério quanto ao futuro. Pela empolgação com que fala sobre relações internacionais, demonstra vontade de permanecer na área. Apesar disso, descarta concorrer ao cargo de comandante máximo da Organização das Nações Unidas (ONU): ¿Estou com 65 anos. Sei que eu tenho pela frente bem menos tempo do que já tive. Estou querendo menos trabalho e mais descanso¿.

O clima descontraído não foi quebrado nem quando os jornalistas o questionaram sobre o projeto de regulação dos meios de comunicação. Enquanto o ministro-chefe da Secretaria de Comunicação Social da Presidência, Franklin Martins, mordia os lábios e balançava a cabeça em tom de reprovação, Lula desafiava: ¿Duvido que vocês encontrem um lugar onde a imprensa é tratada com mais liberdade¿.

Ao fim de pouco mais de uma hora, Lula fez questão de ser fotografado com todos os convidados e chegou a receber um garoto de rua que cantou uma música pedindo oportunidade de estudo. Confira os principais trechos da conversa.

Projeção histórica Eu pretendo construir um memorial onde a história possa ser contada e dar às pessoas as possibilidades de analisarem do jeito que quiserem. Pretendo fazer isso sem pressa para que as pessoas possam ter dimensão do que foi o período do governo Lula, mas também antes do que foi o período, porque o Lula não surgiu do nada. Ele é resultado de um movimento que começa envolvendo a rebelião dos estudantes nos anos 1960, depois a rebelião dos sindicalistas nos anos 1970, depois a criação de movimentos sociais espalhados por esse Brasil. Sinceramente, seria presunçoso dizer como eu quero ser lembrado. A única coisa de que tenho consciência é que mudei a relação do Estado com a sociedade e do governo com os movimentos sociais. Isso mudou e, graças a Deus, o povo brasileiro elegeu a Dilma, para que isso tenha continuidade.

Eleições de 2014 Eu trabalho com a ideia fixa de que a nossa companheira Dilma será outra vez candidata a presidente da República do Brasil. É justo e é legítimo que quem está no exercício do mandato e está fazendo um bom governo continue governando. Então, a Dilma será a minha candidata em 2014. Só existe uma hipótese de a Dilma não ser candidata: é ela não querer ser candidata.

Salário mínimo Será de R$ 540. Se tiver de fazer mudança, a Dilma fará depois de janeiro. Os companheiros sindicalistas não podem fazer acordo que só vale quando for para ganhar mais. Temos um acordo de recuperar o mínimo até 2023 e isso será feito.

Asilo a Battisti Tenho até essa semana, e essa semana vai até o dia 31, para decidir. Tenho a Advocacia-Geral da União, que faz os pareceres jurídicos para mim. Obviamente vou convidar o companheiro Luís Inácio Adams, que vai dizer para mim: ¿Presidente, na nossa ótica, a decisão é essa¿, e eu prontamente concordarei. (O parecer da AGU sugere a permanência de Cesare Battisti, acusado de assassinatos na Itália, no Brasil).

Futuro imediato Você sabe que não tenho mais idade para estudar. Temo que tenha pouco a aprender mais do que eu aprendi na Presidência. Temo porque isso aqui é uma pós-graduação elevada à quinta potência.

Pior momento A mágoa mais profunda que eu tenho é o acidente do avião da TAM, em Congonhas. Nós fomos condenados à forca em 24 horas. Aquele foi o pior dia que eu passei na Presidência da República. Pior do que a época da crise de 2005, porque aquele era um problema político. Eu não me esqueço de um editorial que jogava duzentos cadáveres nas costas do governo.

Arrependimentos Eu não tenho arrependimento. Pode ser que daqui a algum tempo haja. Eu, certamente, fiz coisas erradas, mas indicaria o mesmo ministério que indiquei em 2002, porque era o que eu tinha de melhor. Por exemplo, acho que, na crise econômica americana, acertamos em todas as medidas que nós tomamos, todas. É por isso que o Brasil se saiu tão bem.

Regulação da mídia Temos uma legislação de 1962. Não é possível que as pessoas que passam o tempo inteiro falando em modernidade não queiram modernizar um marco regulatório daquela época. Temos de fazer uma conferência, como fizemos, em que o debate é público, isso é liberdade de imprensa. Liberdade para fazer crítica, para apoiar, para ficar neutro. Estou convencido de que no Brasil exercemos a liberdade de imprensa mais do que em qualquer outro país do mundo.

Fernando Henrique É preciso entender que os tucanos são os principais adversários do governo e, por serem os principais adversários, é normal que haja acirramento nas relações. Mas, do ponto de vista pessoal, na hora em que eu encontrar o Fernando Henrique Cardoso, voltaremos a ser, senão amigos, como em 1978, quando o procurei para apoiá-lo como candidato ao Senado, mas pessoas que se tratam com respeito. Obviamente que sempre haverá aquela comparação entre os períodos. Mas aí são números, e para a gente não ficar brigando, é melhor não divergir. Deixe que cada um analise do jeito que quiser.

Estados Unidos A verdade é que não mudou nada a visão americana para a América Latina. E eu vejo isso com tristeza. Seria importante os Estados Unidos participarem da política aqui como parceiros, mas ainda não chegamos a isso. Vamos ver se chegamos.