Título: Sob fogo cerrado nos EUA, projeto de lei de imigração avança
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Fonte: Valor Econômico, 25/05/2007, Especial, p. A16

Quando Ted Kennedy pela janela de seu escritório em Boston, pode ver a escadaria no porto, onde todos os seus oito bisavôs pela primeira vez pisaram em solo americano. Isso o faz recordar, contou a colegas no Senado nesta semana, que a reforma da legislação americana de imigração é uma "enorme responsabilidade". Kennedy é o democrata mais envolvido no esforço pela aprovação de um projeto de lei bipartidário para garantir a integridade da fronteira, aliviar a escassez de profissionais capacitados no país e oferecer um caminho à cidadania para os estimados 12 milhões de estrangeiros ilegais que já estão no país. Kennedy tem uma difícil caminhada pela frente.

No ano passado, um projeto de lei com objetivo similar foi rejeitado na Câmara por republicanos, que o consideraram muito leniente para com os transgressores da lei, e que aprovaram um projeto próprio, muito mais restritivo, o que produziu um impasse. Neste ano, com o Congresso sob controle democrata, Kennedy voltou à carga. Em 17 de maio, apresentou um plano que formulou junto com John Kyl (um "falcão" republicano no que se refere à segurança das fronteiras) e outros oito senadores. O novo projeto de lei é mais duro que o do ano passado com aqueles que cruzam a fronteira ilegalmente e com quem os contrata. George Bush diz que o assinará. Mas, primeiro, ele precisa ser aprovado no Congresso, algo mais difícil do que atravessar incólume o Rio Grande.

Como está, o projeto de lei busca reparar diversos aspectos do sistema imigratório americano. Primeiro, e antes que suas outras provisões entrem em vigor, a nova lei tornaria mais rigorosa a segurança da fronteira. O texto prevê 320 km de barreiras para veículos, 580 km de cercas e 18 mil novos agentes de patrulhamento de fronteira. Prevê ainda um sistema de identificação eletrônica para assegurar que empregadores comprovem que todos os seus empregados têm permissão legal para trabalhar no país. E endurece a punição para os que sabidamente contratam ilegais.

Para os 12 milhões de ilegais já no país (ou, pelo menos, para os que chegaram antes de 1º de janeiro de 2007), a lei proposta oferece uma excelente oportunidade para legalizarem seu status e abre um caminho tortuoso até a obtenção da cidadania americana. Eles teriam registradas suas impressões digitais e passariam por uma verificação de seu passado, para assegurar que não desrespeitaram outras leis, além das referentes à imigração. Teriam de pagar uma multa de US$ 1 mil. Receberiam, então, permissão para permanecer e trabalhar nos EUA com um novo visto, o "Z". Seriam autorizados a solicitar um "green card" (que dá residência permanente). Os chefes de família teriam de retornar a seus países de origem para lá dar entrada no pedido - mas poderiam, em seguida, voltar aos EUA e ali aguardar o andamento de seu processo (e pagariam outros US$ 4 mil).

Para os que já estão na fila, a nova lei prevê prazos de espera menores. Sua promessa é processar dentro de oito anos a papelada de todos os 4 milhões de famílias que deram entrada com seus pedidos antes de maio de 2005. E promete, no longo prazo, favorecer mais a capacitação profissional e menos os laços de parentesco. Hoje, as maioria dos "green cards" vai para parentes de cidadãos americanos, muitos deles naturalizados recentemente. As empresas que querem contratar estrangeiros especializados que não têm parentes nos EUA enfrentam grandes dificuldades. A quota de vistos temporários para essas pessoas foi de apenas 85 mil neste ano. Quase o dobro entrou com sua papelada apenas no primeiro dia de abertura dos guichês. A lei Kennedy-Kyl procura satisfazer parte dessa demanda reprimida, mediante a distribuição anual de 380 mil vistos permanentes com base em mérito, empregando um sistema de pontuação que leva em conta capacitação relacionada ao emprego, educação e fluência em inglês. Vistos que permitam a reunificação de famílias serão, em larga medida, restritos a esposas e filhos com menos de 18 anos.

Finalmente, o projeto de lei defende a distribuição de aproximadamente 400 mil vistos por ano para trabalhadores temporários, aos quais seria permitido permanecer por dois anos, renovável por até duas vezes, com um intervalo de um ano inteiro entre cada visita. Nesse caso estariam os trabalhadores com baixa escolaridade que fazem funcionar as fazendas, construção civil e restaurantes americanos.

Logo após ser apresentado, o projeto de lei foi apedrejado por todos os campos. Nativistas, em sua maioria republicanos, denunciaram-no como sendo uma "anistia" que incentivaria novas ondas de imigração ilegal. Tom Tancredo, um congressista republicano que quer disputar a Presidência (sem chance de êxito) com base numa plataforma contra a imigração ilegal, exigiu que, com exceção das cláusulas referentes à segurança da fronteira, todas as outras fossem eliminadas. Mesmo sobre essas, ele se manifestou sarcasticamente: são "tão limitadas que parecem quase uma piada". Os talk shows conservadores nas rádios fizeram coro à posição de Tancredo. Ninguém propõe seriamente deportação em massa, mas Tancredo diz que os ilegais irão todos para casa se as leis contra sua contratação forem impostas rigidamente.

A maioria dos sindicatos de trabalhadores também está cética. A AFL-CIO denunciou o programa de trabalhador visitantes, que, acusou, disponibilizará aos empregadores "um contingente imediato de mão-de-obra que poderá ser explorado para arrochar salários e benefícios, e reduzir as salvaguardas de saúde e segurança" de todos os demais. Dois senadores democratas tentaram esvaziar o projeto; um não conseguiu aboli-lo inteiramente; outro busca reduzir os 400 mil vistos para 200 mil.

Os empregadores simpatizam com a idéia de mais migrantes legais, mas temem que o novo sistema será complicado. Muitos se opõem à idéia de terem de checar o status imigratório de todos os seus funcionários. O sistema informatizado proposto pelo governo federal para distinguir os trabalhadores legais dos ilegais tenderá a cometer erros. Mesmo se apenas um empregado em cem for identificado erroneamente como ilegal, isso causará muita dor de cabeça. E o sistema de pontuação também cria dificuldades. Empregadores têm mais condição do que burocratas para julgar quais são as habilidades profissionais escassas no mercado. É por isso que a confusão atual tem vantagens - imigrantes ilegais quase sempre vão aonde há demanda por seu trabalho.

Outros grupos também se queixam. Grupos de defesa dos direitos dos imigrantes dizem que o caminho até a cidadania será demasiado longo e árduo, e que poucos hispânicos terão direito a ele. Nancy Pelosi, a democrata presidente da Câmara, teme que a nova ênfase em competência profissional prejudique famílias, acrescentando que seu partido identifica-se com "famílias e valores familiares". Alguns temem que os democratas na Câmara liquidarão o projeto para impedir que Bush obtenha um êxito em política interna.

Apesar do furor, a opinião pública concorda com os princípios subjacentes. Pelo menos 60% dos americanos querem dar aos ilegais uma chance de se tornarem cidadãos, se trabalharem duro e comportarem-se. Não se espera um voto definitivo no Senado por várias semanas ainda, e então a decisão será submetida à Câmara. E é uma Câmara menos agressiva, atualmente, de modo que esse projeto de lei ainda tem uma chance.

(Tradução de Sergio Blum)