Título: O "milagre" econômico da Argentina
Autor: Vale, Sérgio
Fonte: Valor Econômico, 24/05/2007, Opinião, p. A15

A Argentina tem apresentado, nos últimos anos, um desempenho econômico bastante acima da média do que se achava possível de ocorrer. Quando aconteceu a crise econômica no final de 2001, via quebra do sistema de paridade cambial então vigente, a economia imergiu num estado de desaceleração bastante grave. Sabia-se que a tendência era ter alguma recuperação nos anos seguintes e até os mais otimistas, como o Ministério da Economia da Argentina, subestimaram em muito o potencial de recuperação do país.

Pode-se dizer que, entre 2002, pico da crise, e 2006, a recuperação da economia argentina foi generalizada. No caso dos investimentos, é salutar perceber que o crescimento se deu intensamente tanto em construção civil (com grande peso do setor residencial) quanto em máquinas e equipamentos. Por conta do aumento das importações inicialmente, 55% das máquinas e equipamentos demandadas na Argentina hoje são importadas, lembrando que o crescimento da importação de bens de capital tem sido mais ampla do que era no período Menem, principalmente em 1998, no auge da paridade cambial. Naquele momento, quase todo o crescimento da importação de bens de capital era para o setor de bens de consumo e para automóveis. A partir da crise de 2002 esse crescimento foi mais equilibrado, principalmente em bens de capital para a indústria e serviços. Isso mostra que a recuperação dos investimentos na economia Argentina está longe de ser concentrada.

Quando se compara os números argentinos com os brasileiros, vê-se que não evoluímos muito no sentido de aumentar os investimentos. Enquanto a Argentina deve alcançar este ano 24% do PIB de investimento, o Brasil ainda patina abaixo de 17%.

Assim, em termos de atividade é inegável que a economia argentina conseguiu mostrar um vigor que não se esperava e o resumo disso tudo pode ser visto no cálculo da produtividade total dos fatores (PTF) da Argentina feita pela MB. A contabilidade do crescimento do PIB mostra que cerca de metade do crescimento médio dos últimos anos veio por aumento de produtividade e que o pico de produtividade alcançado em 1997 deve ser ultrapassado este ano. Ou seja, em 2007 estaremos vendo o ciclo de perda-recuperação se completar totalmente, assim como já havia acontecido com o PIB.

-------------------------------------------------------------------------------- O populismo nada velado faz com que a Argentina tenda a perder parte do que ganhou nos últimos anos, além de continuar espantando investidor externo --------------------------------------------------------------------------------

Mas todo esse crescimento tem tido um custo relativamente elevado e mesmo uma produtividade alta não tem sido suficiente para controlar um dos principais problemas da Argentina atualmente: a inflação. Mesmo com uma utilização da capacidade instalada relativamente baixa e estável, o que indicaria capacidade de aumento de produção sem pressões inflacionárias, a inflação tem crescido sustentadamente. E isso levou o governo argentino a interferir nos cálculos de inflação feitos pelo Indec para forçar sua baixa para algo em torno de 10% (bem abaixo dos 15% a 20% previstos pelo mercado para o país).

A causa primária disso é um desalinhamento de preços relativos, via câmbio, aliado a uma economia continuamente aquecida. De fato, o hiato do produto (diferença entre o produto efetivo e o produto potencial) tem crescido nos últimos trimestres, comportamento semelhante ao que ocorreu no final dos anos 90. Mas, apesar do crescimento das importações, elas não têm sido suficientes para conseguir controlar a inflação, como acontece no Brasil, porque a taxa de câmbio real na Argentina está bem menos apreciada que no caso brasileiro. Mais ainda, o câmbio real daquele país é o dobro do que era na época da paridade cambial, enquanto no Brasil o câmbio real já se aproxima do valor de janeiro de 99, quando a crise cambial ocorreu. Assim, muito da elevada inflação recente pode ser explicada menos pelo lado da demanda e mais pelo desalinhamento dos preços relativos, o que é refletido pelo câmbio depreciado. Além disso, em parte por questões eleitoreiras, os trabalhadores têm conseguido aumentos de salário bem acima da inflação, o que implicou em aumento do custo do trabalho em mais de 20% até o segundo semestre do ano passado, enquanto a produtividade do trabalho não passou de 3,6% no período. Em termos reais isso significa que o custo está crescendo cerca de 7% acima da produtividade (considerando uma inflação de 10%). Em outras palavras, isso sinalizaria uma inflação que teria que estar rodando na casa dos 17%, que, somada à produtividade, daria a evolução do custo do trabalho. Como o governo têm atuado fortemente na contenção de preços, usando até de ameaças às empresas, isso pode significar que essas empresas podem estar diminuindo suas margens justamente nos 7% que não conseguem repassar para os consumidores. O resultado disso é menor lucro e menos capacidade de investir.

Como problema adicional, há a questão fiscal. Apesar das receitas crescerem a ritmo elevado, os gastos públicos têm crescido num ritmo mais forte ainda este ano. No acumulado do primeiro trimestre de 2007 as receitas totais cresceram 35,7%, enquanto os gastos aumentaram 46,7%, em relação ao mesmo período do ano passado. A maior culpada dessa aceleração é a previdência, com quase 80% de aumento este ano, fruto do aumento do salário mínimo de 350 para 530 pesos. Adicionalmente, a reforma da previdência feita este ano aponta forte crescimento das despesas para os próximos anos. Exemplo disso é que todos homens acima de 55 anos e mulheres acima de 50 passaram automaticamente para o regime público sob o novo regime.

Por fim, há o gargalo não resolvido da questão energética. Diferentemente da crise de 2003/2004, que foi solucionada com o gás boliviano, dessa vez o crescimento forte da indústria não tem como contar com compras adicionais de gás. Para ajudar a diminuir a margem das indústrias, o governo também implementou um plano (Energia Plus) com o intuito de forçar essas empresas a gerarem sua própria energia ou então comprar mais caro, o que limita a capacidade de expansão industrial e pode levar a um problema de excesso de demanda no futuro, se a economia continuar crescendo neste ritmo.

O mais grave é que esses problemas devem se arrastar até a eleição presidencial marcada para outubro deste ano. Sem candidatos definidos, mas claramente com larga dianteira nas pesquisas do atual presidente Kirchner, a tendência é a de não causar atritos com a população. Esse populismo nada velado faz com que a Argentina tenda a perder nos próximos anos parte do que ganhou nos anos anteriores, além de continuar espantando o investidor externo. Em resumo, apesar do bom crescimento, as perspectivas para o país vizinho não são positivas a longo prazo.

Sérgio Vale é economista da MB Associados.