Título: Onda de estréias na bolsa esquenta debate sobre qualidade dos ativos
Autor: Valenti, Graziella
Fonte: Valor Econômico, 24/05/2007, Empresas, p. B1

A extensa lista de aberturas de capital e ofertas de ações na Bolsa de Valores de São Paulo (Bovespa) está tirando o fôlego dos gestores de fundos de investimento nacionais. Com tantas operações, o trabalho dobrou. Em menos de cinco meses, foram realizadas 26 distribuições na bolsa, mais do que o total acumulado no ano passado, e mais de outras 20 estão em análise na Comissão de Valores Mobiliários (CVM). O volume captado pelas companhias e seus sócios alcançou R$ 18,3 bilhões.

Mas a queixa dos especialistas não se deve ao aumento do trabalho. Ao contrário. Todos são unânimes em ressaltar o quão positivo e importante esse momento é para o Brasil, por fortalecer o mercado de capitais. A frustração vem do propósito de algumas operações.

Não é segredo que o mercado prefere as emissões primárias, nas quais o dinheiro vai para o caixa da empresa, às colocações secundárias, em que os sócios vendem parcial ou integralmente sua parte na companhia. Mas, até agora, predominaram as operações mistas. Dos cerca de R$ 65 bilhões levantados com as ofertas, pouco mais da metade foi destinado às empresas. O restante foi para os acionistas vendedores das estreantes. Não é pouco.

A tolerância dos investidores pelas secundárias vem diminuindo, assim como a disposição de avaliar as novatas. O coordenador de renda variável de uma instituição financeira, que prefere não ser identificado, viveu o dilema de reduzir sua participação nas reuniões de apresentação das oferta iniciais de ações, que ocorrem quando uma companhia lista pela primeira vez suas ações na bolsa. Os encontros tomavam tempo demais e, poucas vezes, ele optava pelo investimento.

Vem aumentando a freqüência com que os fundos domésticos optam por não participar de um investimento, depois de avaliarem o projeto de abertura de capital. Há um sentimento de que as operações estão perdendo qualidade devido à pressa de ir à bolsa.

Nenhum dos participantes do mercado, porém, quer atribuir à Bovespa ou à CVM a responsabilidade pelas condições das companhias que listam suas ações na bolsa brasileira. Preferem defender a visão de que cabe ao investidor saber em que está aplicando seus recursos. Os especialistas enfatizam que a excelência em governança não garante a existência de um bom empreendimento empresarial.

O gerente de práticas empresariais e de investimentos do Internacional Finance Corporation (IFC), Mike Lubrano, é pragmático ao falar sobre a motivação das listagens. Depois de ressaltar o lado positivo desse movimento e o bom momento da economia brasileira, reitera a lição dos investidores domésticos: o compromisso com boas práticas empresariais não elimina a necessidade de uma análise criteriosa dos fundamentos. "São temas distintos."

Lubrano acredita que seja normal a convivência entre bons e maus projetos. Para ele, a eventual redução da qualidade das ofertas deve-se ao momento positivo para os vendedores, pois os valores obtidos pelos papéis estão elevados. "É natural que haja euforia. Não há como eliminar a influência da psicologia humana desses processos."

A correria rumo à abertura de capital - que vem trazendo projetos de toda sorte - é fruto justamente desses elevados preços aos quais Lubrano se referiu. A pressa é para tentar obter o maior valor possível para os papéis a serem colocados. Segundo um especialista, paga-se 100% do melhor cenário, que é o mais difícil de se concretizar.

Uma forma de avaliar o quanto está sendo pago pelos papéis das novatas é por meio de um múltiplo que contrapõe o valor atribuído à companhia com a expectativa de sua geração de caixa. Em 2004, as ações da Natura foram vendidas pelo equivalente a 7,8 vezes a sua projeção de caixa operacional e, quase dois anos depois, os papéis da Gafisa foram colocados por 19,2 vezes.

A explicação para o desalento dos especialistas está nos próprios prospectos das emissões. Os documentos - leitura essencial antes do investimento - deixam transparecer que a decisão de levar o negócio à bolsa, em boa parte dos casos, deve-se ao interesse dos sócios de obter bons preços e liquidez com a venda de uma parte da companhia.

Algumas vezes, as empresas somente são apresentadas ao mercado em condições razoáveis depois de receber empréstimo bancário - do próprio coordenador da oferta de ações. Caso da Inpar, por exemplo, que ainda não obteve aval da CVM para sua operação. Recentemente, republicou as demonstrações financeiras de 2006, com mais detalhes em vários itens. Também não há como se esquecer da CPM, companhia de tecnologia do Bradesco, em sociedade com Deutsche Bank e Goldman Sachs. A empresa recebeu aporte de R$ 100 milhões dos sócios para que o patrimônio líquido ficasse minimamente positivo no fechamento do balanço de 2006. Ainda assim, a empresa partiu para uma fusão, em busca de uma nova cara para o negócio. O mercado deverá ser apresentado ao que agora é a CPM Braxis.

A conseqüência dessa rapidez é que algumas companhias chegam à bolsa sem a devida maturidade. Além disso, nem sempre os controladores estão preparados para conviver com sócios, num ambiente de transparência. Diante disso, aumenta o clamor dos especialistas pela seletividade das aplicações, como forma de defender a qualidade dos ativos do mercado brasileiro.

Além da corrida para aproveitar a receptividade do investidor, a própria concorrência entre os grandes bancos que atuam no mercado de capitais estimula a onda de ofertas. As instituições correm para fincar sua marca. Credit Suisse, UBS Pactual e Morgan Stanley estão entre os destaques desse movimento. Juntos ou individualmente, lideram as estréias. Os bancos também almejam novos negócios ao listar uma companhia. Com esse movimento, geram oportunidades como fusões e aquisições e até o aumento do giro no mercado de ações por esses investidores.

O professor da Graduate School of Business, da Universidade de Stanford, George Parker, diz em entrevista ao Valor, que o interesse de sócios em vender parte de seus ativos no melhor preço possível deve ser visto com naturalidade. Mas ressalta que é muito importante gerir a integridade e a honestidade dos acionistas que estão levando às companhias brasileiras ao mercado.

Segundo Parker, a questão é especialmente sensível pela reduzida participação da população na bolsa. "As pessoas ainda precisam desenvolver confiança para aplicar. É importante criar condições para isso."

Embora a defesa de um comportamento seletivo se faça cada vez mais presente entre os investidores domésticos, não é o que prevalece entre os estrangeiros. A justificativa de aplicação de um fundo internacional, muitas vezes, está ligada ao cenário macroeconômico mais do que aos fundamentos das companhias. Há grande entusiasmo com o Brasil, pela aposta que o país alcançará a avaliação das agências de risco de "grau de investimento".

O diretor da consultoria The Altman Group, Fernando Carneiro, admite que o estrangeiro está mais condescendente com empresas brasileiras, especialmente em alguns assuntos como remuneração para executivos - alvo de inflamados debates no mercado nos Estados Unidos. Lubrano, do IFC, destaca, porém, que o Brasil tem o ambiente regulatório mais avançado em governança corporativa, dentre os países emergentes. O país está em destaque tanto na comparação latino-americana quanto com o chamado bloco Bric - Brasil, Rússia, Índia e China.

O gerente de pequenas e médias empresas do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), Pedro dos Passos, destaca os cuidados que a instituição possui para conceder crédito. Ponto crucial na análise do empréstimo é o projeto apresentado pela companhia, no qual serão aplicados os recursos obtidos. Outra avaliação imprescindível é o histórico do controlador.

Com essa lição, fica difícil pensar no sucesso da recém-listada Brasil Ecodiesel. O maior acionista está oculto por um fundo de investimento. Pontos como esse também são observados pelos investidores. Mas, diferentemente de um banco que concede crédito, o mercado raramente recusa por completo a aplicação. Os bilhões cedidos nas ofertas na bolsa nem se comparam aos US$ 215 milhões fornecidos pelo BNDES a pequenos e médios negócios, nos últimos anos.

A reação dos investidores de ações normalmente limita-se à redução do preço proposto pela companhia para a oferta inicial ou à dificuldade na colocação secundária - como no caso da lavanderia Atmosfera, que desistiu da oferta, e das companhias imobiliárias Even e JHSF - bastante diferente do que ocorreu com Natura, que contou apenas com oferta secundária.

Quando o tema é preparo para estréia na bolsa, não há como não falar da PPE Fios Esmaltados. A companhia, antiga Pirelli Cabos, deve voltar à bolsa com mais de R$ 460 milhões em contratos de cobre por vencer e dívidas de R$ 120 milhões. Adquirida em outubro passado pelos próprios administradores, junto de investidores ligados ao banco Fator, a empresa segue o modelo americano de buscar se reerguer com recursos do mercado de ações.

O sócio da gestora de recursos Dynamo, Fernando Pires, destaca que a oferta inicial de ações é uma conquista do investidor. "O controlador tem que encarar a abertura de capital como uma operação inicial e não como uma 'final private offer'." Essa foi a forma que o profissional encontrou de sutilmente passar seu recado a uma platéia de companhias interessadas no tema, durante recente evento realizado na Bovespa.

A elevada presença de ofertas secundárias nas operações de abertura já incomodava a Dynamo há um ano. Em março de 2006, a gestora de recursos tratou do tema na carta trimestral, enviada aos cotistas. O documento levantava, inclusive, a possibilidade de as emissões primárias estarem superestimadas para melhorar a percepção dos pacotes mistos com grande quantidade de papéis dos controladores.