Título: Neutralização da doença holandesa
Autor: Pereira, Luiz Carlos Bresser
Fonte: Valor Econômico, 31/05/2007, Opinião, p. A16

O fato de que a apreciação real é cada vez maior sem que as exportações totais caiam, mas aumente a participação das commodities, dificilmente pode ser explicado sem a identificação da doença holandesa - uma grave falha de mercado que aprecia o câmbio, inviabiliza a indústria, mas é consistente com o equilíbrio a longo prazo da conta corrente do país. Caso esse diagnóstico se confirme, sabemos que a única forma de neutralizar esta maldição dos recursos naturais é impor um imposto sobre a exportação dos bens que lhe dão origem, de forma a deslocar sua curva de oferta para cima e impedir que esses bens pressionem a taxa de câmbio para baixo.

Estaria havendo, nesse caso, um confisco dos exportadores de bens beneficiados por recursos naturais. Não é essa a minha proposta. De fato, estou propondo que a sociedade brasileira e os setores interessados discutam um imposto variável e marginal que neutralize a doença holandesa, mas essa proposta não implica qualquer confisco. Dados os preços internacionais hoje vigentes das commodities exportadas, entendo que a alíquota do imposto que venha a ser criado deverá ser zero enquanto a taxa de câmbio for igual ou menor do que os atuais R$ 2,00 por dólar. O imposto sobre exportações será, portanto, um imposto "marginal", que só existirá ou se tornará positivo se o governo lograr elevar a taxa de câmbio. Uma vez alcançada a taxa de câmbio de equilíbrio - ou seja, que viabiliza indústrias no estado da arte da tecnologia e assim neutraliza a doença holandesa - a alíquota do imposto de cada mercadoria deverá ser definida com uma sobra para o produtor (se a taxa de câmbio for para R$ 2,60, o imposto deverá ser de no máximo R$ 0,50, ficando um ganho de R$ 0,10). Além de variar originalmente de mercadoria para mercadoria, dadas as atuais cotações dessas mercadorias, o imposto variará também em função da variação da cotação internacional de cada uma delas. Se essa cotação baixar, a alíquota do imposto deverá baixar proporcionalmente até zero; caso a baixa seja ainda maior, tornando a commodity gravosa, o fundo de estabilização que será criado com o valor do imposto fará uma compensação aos produtores até que o preço internacional volte à normalidade. A baixa da alíquota deverá ocorrer com uma defasagem de tempo razoável, de forma a garantir a realização de seu objetivo, que é o deslocamento da oferta do produto para cima.

-------------------------------------------------------------------------------- Além da administração da taxa de câmbio via baixa dos juros e compra de reservas, é preciso um imposto de exportação --------------------------------------------------------------------------------

Além, portanto, de não haver nenhum confisco, haverá um duplo ganho para os produtores: primeiro, porque o imposto pago deverá ser menor do que o valor ganho pela depreciação do real; segundo, porque haverá a garantia de remuneração mínima caso haja uma queda forte demais dos preços internacionais. A definição do imposto e dos setores que serão onerados e das respectivas alíquotas-base será, naturalmente, precedida de um amplo debate com os interessados e toda a sociedade. O agronegócio e o setor exportador de minérios são dois setores estratégicos fundamentais para a economia brasileira. Em ambos houve avanços tecnológicos extraordinários, e há empresários com grande competência. É impensável, portanto, onerar esses setores, que, ao contrário, precisam do contínuo apoio da política econômica.

A existência de recursos naturais como os que existem no Brasil pode ser uma maldição, implicando na doença holandesa, ou pode ser uma benesse quando essa doença é neutralizada. Como se trata de uma falha de mercado grave, ela exige a intervenção corretiva do governo - a qual, entretanto, é simples, e pode ser perfeitamente compatibilizada com um regime de câmbio flutuante desde que administrado. Além da administração geral da taxa de câmbio através da baixa da taxa de juros e da compra de reservas, é necessário estabelecer o imposto de exportação. Seu objetivo não é receita fiscal, mas o deslocamento da curva de oferta do produto para cima, de forma que ele não pressione mais a taxa de câmbio para abaixo do nível considerado razoavelmente de equilíbrio. O fundo que deve ser criado com sua receita deverá permanecer no exterior como uma reserva adicional do país, de forma que, ao se limitar a entrada de dólares no país, a taxa de câmbio também não é pressionada para baixo; o fundo só deverá ser usado nos casos, que suponho serão relativamente raros, em que o produto se torne gravoso mesmo depois de zerada a sua alíquota de imposto. Poderá também ser usado em caso de pragas e outros acidentes da natureza aos quais a agricultura está sempre sujeita.

No passado, nos anos 1970, por exemplo, o Brasil neutralizou a doença holandesa de uma maneira pouco razoável, definindo alíquotas elevadas para a importação de produto a produto, e subsídios igualmente elevados para os bens manufaturados. Dessa forma, impunha-se um imposto mal disfarçado sobre os bens primários. Esse sistema era melhor do que não neutralizar a doença holandesa como estamos fazendo desde o início dos anos 90 e, em grande parte por isso, crescendo muito menos do que nossos competidores, mas era evidentemente um sistema condenável que estava sujeito a distorções de todos os tipos. O sistema que estou sugerindo exige também administração, já que é necessário corrigir uma falha de mercado, mas essa gestão pode ser simples e transparente.

Luiz Carlos Bresser-Pereira é professor emérito da Fundação Getulio Vargas, ex-ministro da Fazenda, da Reforma do Estado, e da Ciência e Tecnologia, é autor de "Macroeconomia da Estagnação: Crítica da Ortodoxia Convencional no Brasil pós-1994". (Editora 34, 2008). www.bresserpereira.org.br . E-mail: lcbresser@uol.com.br