Título: Serra volta atrás para conter crise e desgaste
Autor: Agostine, Cristiane
Fonte: Valor Econômico, 01/06/2007, Política, p. A11

Na tentativa de aplacar a crise aberta com estudantes e professores, o governador de São Paulo, José Serra (PSDB), recuou ontem nas mudanças das diretrizes do ensino superior. Em decreto publicado no Diário Oficial, Serra garante autonomia à USP, Unesp e Unicamp e reformula os itens que foram atacados pelos reitores, docentes e estudantes.

Com a medida, o governo tenta acabar com a greve que atinge as três universidades paulistas e forçar a desocupação da reitoria da USP, tomada há quase um mês por estudantes. A publicação foi feita no mesmo dia em que os manifestantes programaram um ato na sede do governo. O protesto reuniu 2 mil pessoas, segundo a Polícia Militar (ou 10 mil, para a Conlutas).

Nos cinco decretos assinados no início da gestão, Serra deixou em aberto quais eram as intenções sobre as universidades. Ao incluir as autarquias e fundações em itens como a proibição de contratação de funcionários, pedido de autorização ao governo para remanejar recursos, reavaliação e renegociação de contratos e a discussão sobre salários na Comissão de Política Salarial (na qual o governo participa), o governador perdeu o apoio até dentro do PSDB. Todos os itens foram alterados.

O governo também mudou sua postura em relação aos manifestantes. Acusado de falta de diálogo, ontem recebeu um grupo de representantes dos docentes, dos funcionários e dos alunos para discutir a autonomia universitária e uma pauta de reivindicações. Entre os pontos, o aumento de repasse de recursos às universidades, reajuste salarial e melhores condições para a moradia estudantil.

"Foi um avanço do governo, mas ainda temos pontos para negociar", disse o professor doutor Paulo Centoducatte, da Unicamp. A iniciativa não foi suficiente para acabar com a greve dos funcionários. Ontem, em reunião com o governador, eles avaliaram o impacto dos decretos e negociaram o reajuste salarial. Hoje, os grevistas reúnem-se para definir se vão aceitar as propostas do governo.

O recuo também não fez com que os estudantes desocupassem a reitoria da USP. Em nota, eles dizem que foi apenas o início da negociação. "O governo sinalizou que começa a entender a importância da autonomia universitária, legitimando o movimento."

Entre a assinatura do primeiro decreto e a mudança de postura do governo, passaram-se quase seis meses. A imagem de Serra, ex-presidente da União Nacional dos Estudantes, ficou desgastada em um meio onde o tucano tinha amplo apoio. Na análise dos professores, o governador foi inábil na implementação de mudanças por meio de decretos, sem abrir ao diálogo. Durante as eleições, o tucano chegou a receber apoio dos intelectuais no "Movimento Serra Presidente", quando o PSDB ainda não havia definido se seria ele ou o ex-governador Geraldo Alckmin que concorreria ao cargo. Ao longo da crise aberta pelos decretos, o governador viu se esvair o apoio que obtivera do meio acadêmico.

Um dos signatários, o professor livre docente José Álvaro Moisés, de Ciência Política da USP, reclama da forma como a questão foi posta. "Há questões que o governo queria colocar às universidades que são legítimas, mas o modo como foram feitas criou uma enorme controvérsia ao invés de consenso e enorme dificuldade de diálogo", disse Moisés, que integrou os dois governos do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. "Houve erro por vários lados. Os estudantes cometeram erro mais grave porque usam a força para impor um ponto de vista (com a ocupação da reitoria), mas houve erros também do governo."

Mesmo simpática ao governador, a diretora da Faculdade de Educação e professora livre docente, Sonia Penin, disse ter recebido com surpresa os decretos. "Houve um estranhamento não só aos decretos. Não só em relação ao conteúdo, mas em relação à forma", afirma. "Ele tem todo o direito de fazer essas medidas, mas para ter legitimidade é preciso dialogar. "

Serra não discutiu sobre os decretos nem com seus amigos próximos, ligados ao meio acadêmico, e com ampla experiência nas questões universitárias. Luiz Gonzaga Belluzzo, professor aposentado da Unicamp e signatário do decreto que garantiu autonomia às universidades, em 1989, quando era secretário de Ciência e Tecnologia do governo Orestes Quércia, não participou do debate sobre a forma como as medidas foram implementadas. Os dois encontram-se toda semana para assistir juntos aos jogos do Palmeiras, mas Belluzzo disse não ter sido procurado para falar sobre o assunto. Com o secretário de Ensino Superior, José Aristodemo Pinotti (DEM), Belluzzo conversou sobre o tema apenas uma vez. "Os decretos não foram bem concebidos. Eram desnecessários e poderiam ter sido feitos de outra maneira", disse Belluzzo.

A falta de diálogo sobre as diretrizes do ensino superior é criticada também por políticos do PSDB e do DEM. Durante os seis meses, a bancada tucana na Assembléia não conseguiu aprofundar a discussão sobre a autonomia universitária. Para a deputada Maria Lúcia Prandy, faltou "sensibilidade " do secretário de Ensino Superior para discutir. "Quando se mexe com os reitores, com a universidade, é preciso ouvir os setores envolvidos", disse. Procurado pela reportagem, Pinotti não se manifestou até o fechamento desta edição.

Os integrantes do PSDB também relatam ter ficado de fora das decisões. De acordo com um integrante da cúpula paulista, há pouquíssimo debate com Serra sobre as diretrizes do governo e que, em parte, estão sob controle do DEM.

Na avaliação de pessoas próximas a Serra, a administração de Pinotti é questionável, assim como a criação da secretaria. Segundo um aliado com trânsito no governo, a percepção é que Pinotti tem se equivocado na defesa dos decretos junto ao meio acadêmico e aos estudantes. Nas duas últimas semanas, o secretário evitou entrevistas e ficou afastado de outras duas negociações com os grevistas. Em seu lugar, Serra designou o secretário da Justiça, Luiz Antonio Marrey para negociar a desocupação da reitoria da USP, onde os estudantes estão há quase um mês.

A secretaria foi criada por desejo pessoal do governador e Serra nomeou seu amigo próximo. Segundo um alto dirigente do DEM nacional, não foi a pressão política do partido que levou à criação da secretaria, nem a nomeação. O integrante do Democratas relata que Pinotti não é forte politicamente na sigla e que o DEM "não se queimaria com Serra pelo Pinotti".

Pinotti foi um dos coordenadores da campanha do tucano ao governo municipal e assumiu a secretária de Educação quando Serra foi prefeito de São Paulo. No cargo, enfrentou algumas polêmicas, como a proposta de que os uniformes escolares trouxessem marcas de empresas, como forma de patrocínio.

O secretário Pinotti analisa que não foi um recuo de Serra. Em nota, disse que o novo decreto "não cria nem acrescenta nada ao que já estava expresso no decreto que visa esclarecer", mas apenas deixa clara a intenção do governo.

Não foi a primeira vez que o governador Serra teve de recuar em relação aos decretos. A primeira mudança foi na redação do artigo que dava dava poder ao Executivo na presidência do Conselho dos Reitores. Os reitores que a mudança, para dar o cargo ao Pinotti, feria os interesses universitários. Os secretários da Fazenda, Mauro Ricardo, e de Gestão Pública, Sidney Beraldo, tiveram de divulgar ofícios garantindo que nada alteraria a autonomia.

A reelaboração dos decretos pode ajudar o governador a mostrar que está disposto a ser mais democrático, avaliam integrantes do PSDB e docentes. "Ao rever os decretos, ele mostrou espírito democrático e respeito às universidades", disse a deputada Maria Lúcia. "Foi um avanço e espero que esse gesto seja repetido em momentos que não haja pressão", disse a diretora Sonia Penin.

Entretanto, ressalta Sonia, um ponto não ainda não ficou claro. O decreto publicado ontem veio em resposta a um pedido dos reitores da USP, Unesp e Unicamp e do presidente da Fapesp (entidade de pesquisa) por mais clareza sobre os cinco decretos anteriores. Os representantes também pediram a criação de um grupo de trabalho, com integrantes do governo e das universidades, para discutir a política de ensino superior para o Estado, mas Serra não se manifestou sobre esse ponto. "Essa é uma questão de fundo e falta um posicionamento de Serra. Se vai haver mudanças, é preciso que a comunidade acadêmica participe das decisões. Temos que sentar à mesa, todos juntos, para negociar."