Título: Foro e improbidade administrativa: perigo à vista
Autor: Toldo, Nino Oliveira
Fonte: Valor Econômico, 01/06/2007, Opinião, p. A14

A sociedade brasileira está perplexa com os escândalos envolvendo altas autoridades da República e assustada com a torpeza dos fatos divulgados. A sociedade clama por justiça, ao mesmo tempo que reclama, com razão, da impunidade. "Cadeia só para os pobres" e "tudo vai acabar em pizza" são pensamentos recorrentes.

No entanto, um tema que muito contribui para essa sensação de impunidade vem sendo esquecido: a prerrogativa de foro, mais conhecida como "foro privilegiado". Essa prerrogativa está prevista na Constituição Federal em diversos artigos. O presidente e o vice-presidente da República, os membros do Congresso Nacional, os membros dos tribunais superiores, os ministros de Estado e o procurador-geral da República, por exemplo, têm prerrogativa de foro perante o Supremo Tribunal Federal (STF) nos crimes comuns.

Os governadores dos Estados e do Distrito Federal, os desembargadores dos Tribunais de Justiça dos Estados, do Distrito Federal e dos Tribunais Regionais Federais são processados e julgados, nos crimes comuns, pelo Superior Tribunal de Justiça, enquanto os magistrados da União e os membros do Ministério Público da União, nos crimes comuns, são processados e julgados pelos Tribunais Regionais Federais.

São muitas as autoridades detentoras de prerrogativa de foro e, pior, essas autoridades atraem para o seu foro eventuais co-réus. É por isso que no processo dos chamados "mensaleiros", que tramita no Supremo Tribunal Federal, há 40 réus, quando, dentre eles, apenas uns poucos teriam a prerrogativa de se verem processados perante essa Corte.

Mas por que isso leva à impunidade? Por uma razão simples. Os tribunais, por sua própria natureza, não têm condições de proceder à instrução de feitos criminais, o que prolonga os processos, levando, muitas vezes, a outro grave problema de nosso sistema penal e processual penal: a prescrição da pretensão punitiva.

Muitos dos crimes de que são acusadas pessoas com prerrogativa de foro têm penas relativamente pequenas, que prescrevem em tempo não muito longo. Como os tribunais têm que julgar inúmeros recursos e habeas corpus, dividem seu tempo com os processos penais de sua competência originária, nos quais os relatores têm que interrogar os réus e ouvir as testemunhas. Eventual delegação de tais atos processuais a juízes de 1º grau não minimiza o problema.

O procedimento criminal nos tribunais, além do mais, é anacrônico. O recebimento de denúncia - um ato processual relativamente simples - tem que ser decidido por vários membros (de três a 25, conforme o tribunal), o que leva muito tempo. Foi por isso que o ministro Joaquim Barbosa, do STF, afirmou publicamente que o recebimento da denúncia em ação penal de que é relator poderia levar até um ano e, com razão, disse que a prerrogativa de foro seria a "racionalização da impunidade".

-------------------------------------------------------------------------------- Mudanças na proposta garantiriam foro especial mesmo nos inquéritos iniciados depois do fim do exercício da função --------------------------------------------------------------------------------

Os tribunais devem dedicar-se a julgar recursos e, originariamente, somente os habeas corpus e mandados de segurança, que não são poucos. Não deveriam processar e julgar originariamente ações penais.

Como se isso já não fosse um grave problema, no bojo da Reforma do Poder Judiciário em tramitação na Câmara dos Deputados (Projeto de Emenda Constitucional (PEC) nº 358, de 2005), oriunda do Senado Federal e prestes a ser posta em pauta, inseriu-se a proposta de acréscimo do art. 97-A à Constituição Federal, que prevê a subsistência da competência especial por prerrogativa de função em relação a atos praticados no exercício da função pública ou a pretexto de exercê-la, ainda que o inquérito ou a ação judicial venham a ser iniciados após a cessação do exercício da função. Trata-se de dispositivo contrário a jurisprudência do STF.

Mas não é só isso. Esse projeto prevê que a ação de improbidade administrativa terá que ser proposta perante o tribunal competente para processar e julgar criminalmente o funcionário ou autoridade na hipótese de prerrogativa de função, ainda que o inquérito ou a ação se inicie após a cessação do exercício da função.

Esse dispositivo, inserido em um artigo que nada tem a ver com prerrogativa de função, tem por único objetivo ampliar o foro privilegiado para as ações de improbidade administrativa, instrumento da mais alta importância para o controle da administração pública.

Há inúmeras ações de improbidade administrativa em todo o país contra prefeitos, governadores e ministros, dentre outras autoridades, que tramitam perante juízes de primeiro grau, sendo em que em muitas delas já houve julgamento. Com a inserção desse dispositivo, a competência para processar e julgar essas ações seria deslocada dos juízos de primeiro grau para os tribunais. A conseqüência disso é que essas ações teriam tramitação muito mais lenta, empurrando-se para as calendas (ou, popularmente, o dia de São Nunca) sua solução. Se aprovada a proposta, será a institucionalização da impunidade por improbidade administrativa.

Por isso, a Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe), na defesa das instituições democráticas e na busca de melhores formas de distribuição e efetivação da Justiça, conclama os diversos segmentos da sociedade civil organizada e as inúmeras autoridades comprometidas com o estado democrático de direito a que se posicionem contra essa proposição, contida na PEC nº 358/2005.

Não há sentido, tampouco interessa à sociedade, que se submetam à competência originária dos tribunais as ações de improbidade administrativa. Esse tipo de proposição somente interessa a quem deseja a manutenção do triste cenário de impunidade daqueles que, costumeiramente, lesam os cofres públicos. Isso representa um perigo para a democracia!

Nino Oliveira Toldo é juiz federal, titular da 10ª Vara Federal Criminal de São Paulo, doutor em Direito pela Universidade de São Paulo (USP) e vice-presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil.