Título: A última reunião dos mentirosos
Autor: Khrushcheva, Nina L.
Fonte: Valor Econômico, 01/06/2007, Opinião, p. A15

O encontro de cúpula da próxima semana dos oito países economicamente mais avançados do mundo, o G-8, provavelmente será o último do tipo para os presidentes George W. Bush e Vladimir Putin. Há sete anos, no seu primeiro encontro em Liubliana, na Eslovênia, Bush sondou os olhos de Putin e de alguma forma identificou a alma de um cavalheiro cristão, não de um agente secreto. Na próxima semana, eles não precisarão se surpreender se enxergarem o reflexo um do outro, porque os dois exemplificaram a arrogância do poder.

Tanto Bush como Putin chegaram ao poder em 2000, no ano em que seus países se debatiam para reconquistar o respeito mundial: a Rússia, do caos dos anos Yeltsin; e os EUA, do "impeachment" fracassado do presidente Clinton. Cada país pensou que estava imerso numa mediocridade não ameaçadora. Os dois homens, porém, ao se verem em posições de autoridade, governaram a partir das suas posições de referência: Bush como um evangélico convencido de que Deus estava do lado americano, e Putin como o graduado na KGB, convencido de que todo o poder emana de intimidações e ameaças.

E qual foi o resultado? Convencido de que estava certo, e desinteressado em ouvir argumentos contrários, Bush se sentiu livre para solapar o império da lei na América, com vigilância doméstica sem autorização judicial, erosão dos procedimentos estabelecidos e defesa da tortura, além de enganar o público e se recusar a levar em consideração a opinião de especialistas ou de reconhecer fatos no campo de batalha. Dos benefícios fiscais em 2001 à guerra no Iraque, a convicção hipócrita de Bush o levou a acreditar que podia dizer e fazer qualquer coisa para alcançar seu intento.

O dano que a presunção e o delírio de Bush infligiram foram ampliados por sua tosca característica de superestimar o poderio dos EUA. Muito simplesmente, ele imaginou que a América poderia prosseguir completamente só na promoção da sua política externa porque ninguém poderia impedi-lo. Enquanto o seu pai arregimentava o apoio do mundo, além de tropas de mais de uma dezena de países, para a primeira guerra do Golfo, o filho pensou que os aliados eram mais obstáculo que ajuda: à exceção de Tony Blair, ele não se importou em tê-los. Quatro anos depois, a arrogância e a falsidade de Bush foram expostas para o mundo todo ver, inclusive o público americano.

Putin também sucumbiu à mesma arrogância de poder. Sustentado pelos altos preços do petróleo, agora tenta dominar o mundo como se as calamidades sociais que assolam a Rússia - população declinante, crescente crise de Aids e tuberculose, corrupção aumentando a níveis não imaginados por Yeltsin - não importassem. Num encontro de alto nível sobre segurança realizado em Munique em fevereiro, Putin, que geralmente recorre ao paradigma reservado, manipulador e de confronto típicos da Guerra Fria, naquilo que constitui o comportamento diplomático russo, atacou violentamente os EUA com o tipo de linguagem que não se ouvia desde a época em que Krushchev disse: "Enterraremos vocês". As ações dos EUA foram "unilaterais", "ilegítimas" e haviam forjado um "foco de conflitos adicionais".

A avaliação de Putin a respeito do unilateralismo dos EUA (se despida da sua retórica inflamada) pode estar correta. O problema é que ele carece de credibilidade quando exalta a moderação na política externa. Os altos preços do petróleo lhe ajudaram a reconstruir e centralizar o "Estado forte", que foi a sua meta desde o começo da sua presidência. As suas tentativas recentes de usar os recursos energéticos da Rússia para coação política na Geórgia, Ucrânia, Belarus e demais lugares, porém, expuseram a Rússia como um parceiro não-confiável, irritando até os chineses, que não querem ver um império russo reconstituído na sua fronteira.

O público russo, habituado ao autoritarismo, quer que seus dirigentes sejam firmes. O verdadeiro teste de um governante, porém, não reside em se curvar às expectativas do seu povo, mas em perscrutar o futuro e combinar as aspirações do país com suas necessidades e capacidades. Nisto, a arrogância de Putin está decepcionando a Rússia enormemente. Seu projeto monomaníaco de centralizar poder está afastando a mesma categoria de especialistas de que o país necessita para se desenvolver. A Shell e a BP estão sendo expulsas do setor petrolífero no exato momento em que a produção de petróleo da Rússia declina dramaticamente. Suas amarguradas tentativas de oposição ao poderio americano são igualmente desprovidas de visão: ajudar o Irã a desenvolver seu programa nuclear e vender armamentos dotados de tecnologia avançada para a China dificilmente se inserem nos interesses estratégicos de longo prazo da Rússia.

Como de costume, a história está focada em ritmo acelerado na América. Todos podem ver agora os fracassos históricos e grosseiros da presidência de Bush. Com efeito, o povo americano antecipou os historiadores, censurando Bush ao eleger um Congresso democrata em novembro de 2006. Enquanto isso, os problemas da Rússia continuam ocultos por trás de táticas violentas e dos cofres abarrotados de petróleo da burocracia autocrática de Putin. Mas o fato de os males sociais e econômicos da Rússia permanecerem sem tratamento remeteu o país ao declínio de longo prazo que sua presidência deveria ter revertido.

No século XX, a paridade entre a Rússia e a América da Guerra Fria era notória. Para os russos, a América era um império do mal, o mundo da exploração capitalista e uma superpotência nuclear, mas também um berço de prosperidade econômica e da liberdade individual. Para a América, a Rússia também era um império do mal, o mundo do expansionismo comunista e uma superpotência nuclear, mas também um berço de ciência, vigor, e alma.

Uma paridade semelhante caracterizou a era Bush-Putin. Ao contrário da América, contudo, o povo da Rússia ainda não entendeu o preço do poder arrogante em total estado de descontrole.

Nina Krushcheva leciona Relações Internacionais na "The New School" em Nova York. Seu livro "Imagining Nabokov: Rússia Between Art and Politics" ["Imaginando Nabokov: a Rússia entre a arte e a política"] será publicado neste outono. © Project Syndicate/Europe´s World, 2007. www.project-syndicate.org