Título: 40 anos de divisão e chances perdidas
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Fonte: Valor Econômico, 04/06/2007, Especial, p. A14

Uma onda humana tomou a cidade velha de Jerusalém, vinda do ocidente, tragando as muralhas de pedra fria num mar de azul e branco. Entoando canções, dançando e empunhando bandeiras, milhares de jovens israelenses celebraram a captura da capital ancestral, fluindo pelas suas vielas estreitas rumo ao Muro das Lamentações, exatamente como fizeram as tropas israelenses em 7 de junho de 1967.

O dia 16 de maio, data em que a "reunificação" de Israel caiu este ano pelo calendário judaico, foi o dia em que Israel marcou o 40º aniversário de sua maior vitória militar, quando esmagou três Exércitos árabes e se apoderou de uma extensão de terra três vezes maior que a sua em apenas seis dias. Os festejadores vestiam uniforme, mas de um tipo diferente: roupas casuais e solidéus para os homens, saias longas para as mulheres. Diferente dos sionistas religiosos (um quinto dos judeus israelenses), que crêem que assentar o máximo possível da "Grande Israel" é um dever religioso, atualmente poucos israelenses pensam que o melhor momento de Israel lhes deixou muito o que comemorar. Grande parte dos demais provavelmente considera a tomada de terras e subseqüente ocupação como uma tragédia para Israel.

Os palestinos que observaram a marcha silenciosamente, mantidos a distância segura pela polícia, tinham ainda mais motivos para lamentar. Assim como a guerra fez os judeus de todo o mundo se sentirem justificados após 19 anos de precárias condições em Israel, a reunificação da Palestina histórica (Israel, Gaza e a Cisjordânia) sob o governo israelense pareceu ter dado aos palestinos uma oportunidade de recolocar nos trilhos a sua própria luta por um Estado. Desde então, porém, as duas sociedades se fragmentaram a ponto de seus conflitos internos algumas vezes eclipsarem o conflito entre elas. Enquanto isso, uma disputa por terra adquiriu os sombrios contornos de um conflito religioso.

Boa parte dos participantes, segundo consenso atual de historiadores, hesitou em ir à guerra. Os líderes de Israel não acreditaram à época na idéia da "profundidade estratégica", a proteção por meio da posse de mais território; isso veio depois. O presidente egípcio, Gamal Abdel Nasser, construiu a retórica de destruir Israel na tentativa de manter a sua posição de líder "pan-árabe", mas na realidade ficou alertando seus aliados, dizendo que Israel ainda era forte demais para ser atacado. O rei Hussein, da Jordânia, teve contatos secretos com autoridades israelenses, que apoiavam seu regime.

As principais tensões eram com a Síria, que concorria com Israel pelas escassas águas do rio Jordão e apoiava ataques contra o país por parte de guerrilhas palestinas. Entre elas estava o Fatah, liderado por um jovem engenheiro, Iasser Arafat, para quem o que liberaria a Palestina não eram governos degradados, como a fantoche Organização para a Libertação da Palestina (OLP) que a Liga Árabe criou em 1964, mas a luta armada pelos próprios palestinos. O Exército israelense sob o seu impetuoso chefe de Estado-Maior, Yitzhak Rabin, também provocou deliberadamente os sírios numa série de choques, e Israel chegou a ameaçou invadir.

A Síria apelou a Nasser, com quem assinara um pacto de defesa. Ele posicionou tropas no Sinai e fechou o Mar Vermelho à navegação israelense, esperando que isso reduzisse a pressão de seus aliados. Em vez disso, a iniciativa levou Israel a lançar um ataque preventivo. Ainda assim, Levi Eshkol, premiê israelense, se opôs a isso por duas semanas. Só cedeu à pressão do Exército após a ameaça de alguns partidos de deixar a coalizão, o que o obrigou a trazer o linha-dura Moshe Dayan para o governo, como ministro da Defesa.

Foi uma guerra instigada por militares com sede de ação, com uma interpretação equivocada das intenções do inimigo e oportunismo político; uma gigantesca aposta que estendeu as forças de Israel ao seu limite máximo, e que podia ter destruído o país, se fracassasse.

Não admira que os israelenses tenham ficado aliviados e orgulhosos. Mas seus sentimentos iam mais fundo. O Holocausto deixou muitos judeus com uma crise de fé: como poderia um Deus protetor permitir tamanha tragédia? O triunfo em 1967 lhes deu motivo para crer novamente. "Para o povo judeu ser invejado; isto é uma mudança e tanto", concluiu o despacho da "The Economist" enviado de Jerusalém naquela semana.

O fato de ficarem na Cisjordânia os mais importantes locais do Antigo Testamento (a cidade velha de Jerusalém, o túmulo dos patriarcas em Hebron, o túmulo de Raquel em Belém) elevou à sensação de uma mão divina. "Der Judenstaat", o tratado seminal de Theodor Hertzl, pai do sionismo, é geralmente mal traduzido como "O Estado Judeu", em vez de "O Estado dos Judeus", mas à época a tradução incorreta se tornou apropriada. Nas palavras de Michael Oren, um historiador israelense, a guerra "confrontou o Estado de Israel com a sua condição judaica".

Isso deu uma nova credibilidade ao sionismo religioso. Jovens idealistas foram à Cisjordânia, estabelecer assentamentos improvisados, que o Exército de início desmantelou. Mas os demais interesses do país logo convergiram com os deles. A Cisjordânia oferecia lençóis d'água subterrâneos e se prestava a uma boa linha de segurança divisória; a região e a Faixa de Gaza proporcionavam força de trabalho palestina barata e terra para moradias; e a construção de novos bairros judeus em torno de Jerusalém Oriental foi uma maneira de Israel consolidar seu controle sobre a cidade sagrada. Isto ocorreu duas décadas antes do primeiro levante palestino, a Intifada, ter levado os cidadãos israelenses a questionar a conveniência de manter os territórios ocupados.

Para alguns palestinos, porém, 1967 pareceu uma dádiva. Palestinos em Israel, Gaza e Cisjordânia de repente puderam se encontrar de novo após 19 anos separados, ainda que o milhão ou mais de refugiados que vivem fora da região agora tenham ficado isolados. Era mais fácil combater a ocupação pelo inimigo sionista do que a de seus irmãos árabes. Além disso, Nasser usava a dura condição dos palestinos como um conveniente apelo aglutinador para unir o mundo árabe sob sua liderança. O vexatório fracasso da guerra desacreditou o pan-arabismo, permitindo que Arafat trouxesse a causa palestina em si ao centro das atenções. Logo ele assumiu o controle da OLP e intensificou os atentados diretos e violentos contra Israel, tomando o lugar de Nasser como o líder que os árabes admiravam.

A guerra teve, porém, repercussões mais duradouras, que tornaram as coisas mais complexas. Uma delas foi uma mudança geopolítica mais ampla. A chave para a vitória de Israel, um maciço ataque aéreo que destruiu a força aérea egípcia no solo, foi obtida com caças-bombardeiros Mirage e Mystère franceses. Hoje, a espinha dorsal da sua força aérea são os americanos F-15 e F-16. Foi só depois da guerra que os EUA assinaram seu primeiro grande acordo de armamentos com Israel; hoje o país recebe US$ 2,5 bilhões anuais em ajuda militar. A União Soviética, por outro lado, cortou relações com Israel e as fortaleceu com o mundo árabe. O sucesso de Israel galvanizou ainda a diáspora judaica, fazendo surgir o poderoso "lobby judaico" nos EUA e ao movimento "refusenik" na URSS. A recusa de conceder vistos de saída a judeus soviéticos se tornou um tema político e ajudou a manter os judeus do país imunes à assimilação. A Guerra Fria, porém, que até então era uma luta por influência na Europa e na América Latina, agora havia fincado um eixo no Oriente Médio, e os judeus e árabes estavam no seu centro.

Uma segunda mudança foi que, ainda que a guerra tenha provado o poder de dissuasão de Israel, ela tornou esse poder irrelevante. Em vez de confrontar Israel de frente, seus vizinhos se concentraram progressivamente em patrocinar agentes que emaranharam o Exército nas terríveis complexidades da guerra de guerrilhas, na qual a vitória é impossível de definir e na qual é difícil distinguir combatentes de civis. A última guerra convencional de Israel, e sua última vitória clara (embora a um custo pesado), ocorreu em 1973. Hoje o país combate o Irã e a Síria através do Hezbollah no Líbano e vários grupos militantes em Gaza. No ano passado, atacou nas duas frentes, matando muitas centenas de inocentes, mas não conseguiu aniquilar o inimigo. O conceito de que a "profundidade estratégica" do território protegeria o país foi derrotado pelos mísseis scud de Saddam Hussein, na primeira Guerra do Golfo, pelos foguetes de Gaza e do Hezbollah, e agora pela iminente ameaça de um míssil nuclear iraniano. O Exército está em revisão depois da derrocada no Líbano, mas mesmo o mais bem treinado Exército do mundo não conseguirá destruir os tipos de ameaça que Israel enfrenta hoje.

Terceiro, o colapso do pan-arabismo deixou um vácuo ideológico. Ele foi preenchido em parte pelo islamismo político, com seu sonho, não de meramente um único Estado árabe, mas de uma sociedade islâmica unida, ou "umma", regida pelas normas da lei islâmica. À medida que a nova ideologia se firmava, dava margem a interpretações que passaram a ameaçar os regimes da região. A Revolução Islâmica, em 1979, foi seu primeiro sucesso notável. E, em 1987, a versão palestina da Irmandade Muçulmana foi ressuscitada como o Movimento de Resistência Islâmica (Hamas) e iniciou sua longa trilha para assumir controle da causa palestina. O Hamas é para os palestinos o que os colonos foram para Israel: o movimento acredita que a terra foi consagrada aos muçulmanos por Deus, e não é negociável.

Apesar de a maioria dos israelenses já ter aceitado a idéia de que os palestinos devem ter sua independência, a maioria ainda pensa que eles não têm direito automaticamente a ela e que precisam antes conquistá-la oferecendo segurança a Israel. Por sua parte, ainda que a maioria dos palestinos esteja disposta a deixar Israel existir se o país os deixar em paz, a maioria acredita que uma luta armada de algum tipo é justificada, enquanto Israel continuar ocupando suas terras e matando militantes suspeitos e transeuntes inocentes. Nenhum lado jamais teve uma liderança disposta a ignorar essas opiniões.

Nesse ínterim, as colônias israelenses, que pontilham a Cisjordânia, seguem crescendo. As medidas que as protegem de extremistas palestinos, como estradas exclusivas e centenas de pontos de inspeção e bloqueios, asfixiam a economia da Cisjordânia e levam um número ainda maior de palestinos ao extremismo.

Além disso, o desgaste do conflito deixou as duas sociedades profundamente divididas. No lado israelense, a crônica instabilidade dos governos os mantêm reféns de interesses de uma minoria, e os colonos são uma das minorias mais determinadas e organizadas do país. Seus políticos podem forjar alianças com outros grupos, como as crescentes facções ultra-ortodoxas (que eram circunspectos em relação ao sionismo, mas que estão se tornando gradativamente mais favoráveis aos colonos) e os nacionalistas seculares, muitos deles imigraram dos escombros da URSS e compartilham com os colonos uma aversão aos árabes.

Os jovens colonos são tão militantes quanto foram seus pais há uma geração, erigindo pequenos postos avançados na Cisjordânia e resistindo ao seu desmantelamento. A retirada de Israel das colônias da Faixa de Gaza, em 2005, que à época parecia ter abatido o espírito dos colonos, agora parece tê-los deixado mais unidos e encorajados. E a interface entre ultra-ortodoxia e sionismo religioso gerou um novo tipo de jovens colonos, conhecidos como "chardal", que são ainda mais fanáticos.

No lado palestino, a guerra de 1967 armou um estopim de pavio longo ao isolar a Faixa de Gaza e a Cisjordânia do resto do mundo árabe. Isso transformou Arafat e companheiros em lideranças no exílio. Eles se despregaram tanto dos palestinos que viviam sob o domínio israelense que a primeira Intifada, em 1987, os pegou completamente de surpresa. O Hamas se aproveitou e atribuiu para si parte do crédito por aquela sublevação popular. Arafat recebeu permissão de voltar após assinar os acordos de paz de Oslo com Israel, em 1993. Ao tentar impor um sistema de autoridade baseado na lealdade a si mesmo, porém, ele criou uma fissura duradoura no Fatah entre seu pessoal "de fora" e os jovens líderes locais. Corrupto e impopular, o Fatah não conseguiu nem elaborar uma lista unida para a eleição palestina do ano passado. Este fato foi de suma importância na esmagadora vitória do Hamas.

Para complicar ainda mais, os acordos de Oslo, que conferiram aos palestinos nos territórios ocupados uma autonomia parcial, e a segunda e mais sangrenta Intifada, em 2000, que obrigou Israel a se retirar da Faixa de Gaza e a estabelecer a sua linha divisória na Cisjordânia, fragmentaram os palestinos ainda mais. Hoje, Gaza está praticamente isolada para os visitantes, e os residentes podem sair e entrar apenas esporadicamente, através do Egito. Vistos para palestinos de fora visitarem a Cisjordânia estão cada vez mais difíceis de obter. Só uma minoria seleta dos territórios ocupados pode visitar Israel, e os palestinos que vivem em Israel estão se deparando com dificuldades crescentes para visitar os territórios. As pessoas que vivem em campos de refugiados nos países vizinhos sempre estiveram isoladas: não podem retornar à Palestina, freqüentemente são apátridas e seus países anfitriões impõem uma série de restrições que vão do incômodo à opressão.

Isso exacerbou as diferenças na sociedade palestina. A elite urbana e cortesã na Cisjordânia menospreza os residentes mais islâmicos de Gaza e dá sinais de desconforto com a mortal violência sectária no lugar; alguns ainda relembram com um arrepio como uma onda de moradores de Gaza chegou à Cisjordânia em busca de trabalho nos anos 90. Os palestinos em Jerusalém, que tinham permissão de residência desde 1967 mas que se consideravam um nível acima do restante muito antes disso, olham com desdém para os territórios ocupados. Os palestinos progressistas e cosmopolitas do norte de Israel que têm cidadania israelense olham com sensação de superioridade os habitantes conservadores e apegados a clãs de Jerusalém. E todos os demais tratam os palestino-israelenses como colaboradores suspeitos, pois seus avós não fugiram em 1948.

As agendas políticas também divergiram. O Hamas é muito mais poderoso em Gaza e, mesmo dentro do Hamas, os residentes na Cisjordânia estão mais dispostos a sinalizar um acordo com Israel em relação aos habitantes de Gaza. Os refugiados, especialmente os de "fora", se mantêm mais fiéis ao seu "direito de retorno" que os palestinos residentes na Palestina. "Se todos vierem para cá, nós também teremos um grande problema, não só os israelenses", diz, reservadamente, um prefeito (do Hamas) de uma cidade na Cisjordânia.

Desde a morte de Arafat, em 2004, a liderança se fragmentou, e não só entre Hamas e Fatah. O líder exilado do Hamas, Khaled Meshal, tem desavenças com os líderes em Gaza. E, em meio ao esvaziamento do processo de paz, os palestinos residentes em Israel adotaram uma agenda mais local, promovendo campanhas contra a discriminação que sofrem no Estado judeu e por um direito de retorno interno às aldeias dos seus ancestrais que nada tem a ver com o retorno dos refugiados do exterior.

A erosão generalizada da autoridade política, especialmente em Gaza, criou um vácuo de poder que os chefes de clãs e os chefões do crime se apressaram em preencher. A ausência da lei é solo fértil para extremistas islâmicos. Estes são um anátema para as demais facções palestinas, que não querem ser arrastadas à guerra movida pelo Ocidente contra a Al-Qaeda. Em Gaza, esses extremistas são uma pequena minoria, muitas vezes nada mais que fachadas para criminosos. Mas eles assumiram um controle mais firme em alguns campos de refugiados.

Hoje, a mais positiva interpretação sobre a guerra de 1967 é que ela preparou o terreno para a paz entre Israel e seus vizinhos. A derrota fez os árabes começarem a aceitar que o Estado judeu não podia ser destruído. O fim do drama de um Estado pan-árabe os obrigou a negociar com Israel individualmente. As terras que o país havia capturado lhe conferiram algo com que negociar. A devolução do Sinai ao Egito, em 1982, ditou o exemplo. A paz com a Jordânia veio em 1994. As conversações com a Síria estiveram perto do sucesso em 2000. Por fim, 35 anos depois daqueles seis dias históricos, o mundo árabe fez o equivalente à admissão de derrota. Em 2002, a Liga Árabe ofereceu a Israel plena normalização das relações em troca da retirada completa dos territórios conquistados em 1967, e repetiu a oferta no começo do ano.

Como tende a acontecer no Oriente Médio, porém, os eventos já foram ultrapassados por outros eventos. A primeira oferta da Liga Árabe veio no auge da sangrenta segunda Intifada; sua reiteração encontrou a política israelense e a palestina em novos níveis recordes de divisão e desespero. Israel agora vê a si mesma como um país que não luta só contra 200 milhões de árabes, mas contra 1,2 bilhão de muçulmanos, munidos de armas contra as quais não pode resistir e contra uma ideologia que não pode enfrentar. Os palestinos sentem que um Estado viável é praticamente impossível, tão profundamente Israel usurpou suas terras e desmembrou a sua sociedade. A exemplo de muitas guerras, 1967 criou oportunidades. Pena que todos as tenham desperdiçado.

(Tradução de Robert Bánvölgyi)