Título: Desapontada, Igreja aumenta críticas e se distancia de governo
Autor: Maria Lúcia Delgado
Fonte: Valor Econômico, 17/01/2005, Política, p. A6

Ligada ao PT desde a origem do partido, a Igreja - dos segmentos mais conservadores aos progressistas - tem aumentado o tom das críticas à política econômica e à inexistência de uma reforma agrária, dando sinais claros de distanciamento do governo. Para os aliados do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, as ponderações feitas pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), pelas pastorais sociais e até mesmo por teólogos admirados pelos petistas, como Leonardo Boff, são assimiladas e podem auxiliar o governo. Além disso, pontuam alguns governistas, como o próprio presidente nacional do partido, José Genoino, o PT nunca foi um braço da Igreja e a independência é positiva para que o governo enfrente de maneira pluralista e desprovida de preconceitos debates como a pesquisa com células-tronco, política de planejamento familiar e aborto. "O PT é um partido laico, defende a pluralidade religiosa. Temos uma relação com várias", diz ele. O fato é que, para os representantes religiosos com grande interlocução com os movimentos sociais, a história não é bem assim. A crítica, ora mais institucional e branda, ora ácida e bastante contundente, não surte efeito. E parte da velha militância petista, que surgiu das comunidades eclesiais de base (CEBs), anda perdida, desacreditada até da reeleição de Lula em 2006. Para o presidente da Comissão Pastoral da Terra (CPT), Dom Tomás Balduíno, talvez a voz mais crítica e politizada da Igreja Católica, é um erro achar que ocorreu a "libertação" de Lula da Igreja - tese levantada por especialistas depois que o assessor especial do presidente, Frei Betto, decidiu se desligar do governo. "É um equívoco considerar essa Igreja, que ajudou na construção de uma perspectiva de mudança social, proselitista. Não é. Trata-se de uma modalidade nova da igreja, que invoca a justiça. Isso não é igrejismo, nem sectarismo. É uma questão de humanidade", opina. Segundo o bispo, há algo novo na atuação dos movimentos sociais diante da decepção com o atual governo. "Um mal da esquerda é agir de forma pulverizada. Nunca vi algo como agora: os movimentos sociais estão buscando uma unidade organizada. O governo se sente forte, porque está apoiado pelo mundo do mercado. Tem uma boa política internacional e a aceitação de boa parcela da população. Os movimentos sociais perdem nessa correlação de força. Se quisermos mudança, não é com o atual governo. Também não é com José Serra, nem com FHC", analisa Dom Tomás. Mesmo se considerando à margem da Igreja, Leonardo Boff enfatiza que a ala social da CNBB é uma das principais articuladoras dos movimentos sociais e a que faz a crítica mais dura à política econômica. Também engajado nessa frente social, Boff concorda com a análise de Dom Tomás. "A base orgânica do PT são os movimentos sociais. Há um estremecimento na medida em que as promessas feitas (pelo governo) não são cumpridas, especialmente em relação à melhoria do salário e à reforma agrária. Isso levou os movimentos sociais não a romperem com Lula, mas a manterem um certo distanciamento para fazer a crítica e pressionar. Acho que o PT deve se preocupar muito com isso. Grande parte desses movimentos conseguiu formar uma frente mais ampla de pressão, com 45 entidades. Não se trata de oposição a Lula, mas de oposição à política econômica", disse o teólogo ao Valor. Diante desse quadro, acrescenta Boff, os movimentos sociais deixam em aberto um eventual apoio a Lula em 2006. O teólogo acredita, inclusive, na possibilidade de uma campanha articulada em favor do voto nulo, o que seria um alerta bastante significativo ao governo. "Há um mal-estar inegável dentro e fora do governo referente à opção macroeconômica assumida pelo presidente Lula", disse Boff em um artigo publicado recentemente. Essa legião de insatisfeitos, segundo Dom Tomás, ainda não sabe o que fazer, muito menos se a solução seria criar um partido político. "Ninguém concorda com o PSOL, porque é a mesma busca pelo poder", diz ele. Já em relação à prioridade do governo, os movimentos sociais não alimentam mais dúvidas, diz ele. "Quando se coloca na balança a economia e o social, o governo demonstra euforia com o universo macroeconômico, com as metas do superávit, cumprimento de acordos com o FMI, tudo em detrimento do social". O presidente da CNBB, Dom Geraldo Majella Agnelo, faz observações contidas sobre Lula e o governo. "Desejamos, de coração, que o governo venha ao encontro das necessidades dos que mais sofrem. Somos independentes (do governo), mas não somos oposição intransigente. Como a origem do governo foi popular, acreditamos que queiram receber não só louvores, mas também observações que possam melhorar seus propósitos", disse o bispo. Já o documento elaborado durante a 42ª Assembléia Geral da CNBB, em abril do no ano passado, diz que o governo inverteu prioridades e que os movimentos sociais "já não sabem se devem apoiar as políticas do governo Lula". "Lula encontra-se numa situação semelhante à de Jango em 1963", acrescenta o texto, referindo-se à dupla pressão que sofre o governo: de setores conservadores que querem inalterada a política econômica; e dos movimentos sociais. "Defino a CNBB como a caixa de ressonância das aspirações da população mais pobre desse país. A igreja não tem que ter relação privilegiada com nenhum governo; tem que ter relações estreitas com o povão. Se o governo mantém tais relações (com esses segmentos), as relações governo-igreja estarão boas. Se não, serão tensas", disse Frei Betto ao Valor, antes de deixar o Palácio do Planalto. Ele alega que saiu do governo por questões absolutamente pessoais - "estou na crise dos 60" -, e que acha positiva a crítica da igreja. Garantiu, ainda, que o ministro Luiz Dulci (Secretaria Geral da Presidência) está em contato permanente com os movimentos sociais, o que, diz, é inédito em qualquer governo. "O Lula reconhece que ninguém teve mais importância na constituição do PT em âmbito nacional que as CEBs (Comunidades Eclesiais de Base). Mais que o sindicalismo", afirmou o frei. "Só que o governo não transforma as críticas em questão pessoal ou subjetiva, de amigos e inimigos". Para Frei Betto, Lula escuta com a atenção as críticas, que sensibilizam o governo.