Título: Títulos em reais, a nova onda da dívida externa
Autor: Alkimar R. Moura
Fonte: Valor Econômico, 17/01/2005, Opinião, p. A8

Recentemente, alguns bancos brasileiros anunciaram um fato surpreendente: a emissão, no mercado de capitais internacional, de títulos de dívida denominados em reais, ou seja, na própria moeda do emissor. Os valores dos lançamentos são ainda modestos, somando o equivalente a cerca de US$ 330 milhões - nas quatro transações divulgadas pela imprensa -, e os prazos são relativamente curtos (dois a três anos), pelos padrões internacionais. Aquele valor, todavia, só contempla os lançamentos que foram dados a conhecer através do noticiário do final do ano e deixa de incluir as colocações privadas, realizadas por bancos internacionais junto a seus clientes do segmento de "private bank". No entanto, o inusitado nessas operações é que elas aparentemente quebram um paradigma histórico do mercado internacional de capitais, representado pela suposta impossibilidade de países emergentes emitirem títulos de dívida externa em sua própria moeda. Essa restrição, chamada emblematicamente na literatura acadêmica de pecado original por alguns economistas, foi um dos fatores responsáveis pelas inúmeras crises cambiais que, originárias dos países emergentes, sobretudo do sudeste da Ásia, provocaram abalos sísmicos de alta intensidade na economia internacional nos últimos anos. Algumas outras características dessas novas emissões devem ser salientadas. Em primeiro lugar, elas foram realizadas em moeda de um país como o Brasil, que ainda não foi abençoado pelas agencias de "ratings" com o tão sonhado grau de investimento. Em segundo lugar, e também contrariando experiências anteriores, quando as emissões soberanas abriam o mercado para os títulos privados, dessa vez os primeiros emissores foram empresas privadas, sobretudo alguns dos maiores bancos brasileiros. Esses lançamentos recentes provavelmente poderão ser seguidos por colocações do Tesouro Nacional, desde que fique demonstrada, através de novas emissões públicas e privadas e do volume de negociação no mercado secundário, a existência de uma demanda razoavelmente sólida por tais títulos entre os investidores externos. Além disso, as novas colocações não se sujeitam ao chamado "dollar constraint". Isso significa que o comprador dos títulos não está protegido contra riscos da emergência de crises cambiais no Brasil, que possam levar à interrupção no fluxo de pagamentos dos serviços da dívida, por decisões unilaterais do governo brasileiro. Finalmente, eventuais disputas judiciais derivadas desses novos contratos de dívida sujeitam-se à legislação do Estado de Nova York. Entretanto, a noticia não é tão boa quanto parece, e tudo indica que essas operações ainda não nos livraram daquela maldição de origem mencionada acima. De fato, as transações, embora denominadas em moeda nacional, serão ainda liquidadas em dólar, que permanece como a moeda de pagamento nessas transações, pois o real ainda padece de uma doença infantil típica das moedas dos países emergentes, a não-conversibilidade.

Nova modalidade de emissões só se tornou viável devido à abundante liquidez internacional

Os títulos recém-emitidos têm como remuneração uma taxa de juros prefixada, e a liquidação no vencimento será efetuada em dólares equivalentes ao valor em reais do principal mais os juros acumulados no período. Em outras palavras, a diferença entre essa emissão e um lançamento convencional de títulos da dívida externa, pública ou privada, é que, na nova situação, o risco cambial é suportado inteiramente pelo investidor externo, e não pelo emissor doméstico (como é o caso das demais obrigações internacionais do país). Os novos papéis representam, portanto, uma combinação de um título puro de dívida externa privada, como, por exemplo, um certificado de depósito colocado no exterior por um banco brasileiro (no que concerne ao seu registro e liquidação serem efetuadas em dólares em uma "clearing" fora da jurisdição brasileira) e de um título de dívida interna privada, como, por exemplo, uma debênture com cláusula de indexação pela taxa de câmbio (registrada, custodiada e liquidada em reais, em câmara de custódia e liquidação doméstica). Assim, a única inovação na nova modalidade de endividamento externo parece residir, de fato, na transferência do risco cambial do emissor residente para o investidor não-residente dentro das fronteiras do país. É claro que este último poderá se proteger daquele risco através de operações nos mercados futuros de câmbio, à custa, evidentemente, de uma redução na rentabilidade total da aplicação. De qualquer maneira, há que se registrar, de um lado, a versatilidade dos operadores do mercado financeiro internacional, ao criar um título de dívida que permite aos investidores ampliar o leque de ativos para diversificação de suas carteiras. De outro lado, entretanto, é bom reconhecer que a nova modalidade de emissões só se tornou viável devido à abundante liquidez internacional, derivada da política monetária relativamente frouxa dos Estados Unidos, associada aos crescentes déficits fiscal e em contas correntes daquele país. Ambas as situações não devem perdurar por muito tempo, a julgar pelos próprios sinais dos mercados futuros de taxas de juros e pelos cenários econômicos da economia global para 2005. Uma reversão da abundância de liquidez internacional poderá representar o verdadeiro teste da solidez do novo ativo, para indicar se ele resistirá às inevitáveis flutuações da economia internacional ou será apenas mais um modismo passageiro, em um mercado ávido por títulos exóticos e de alta rentabilidade.