Título: Ações judiciais contra o Cade ameaçam combate a cartéis
Autor: Basile, Juliano
Fonte: Valor Econômico, 18/06/2007, Brasil, p. A3

Os crescentes recursos judiciais das empresas contra decisões do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) ameaçam a implementação de políticas contra a formação de cartéis e as fusões consideradas prejudiciais à concorrência. Hoje, de cada cinco decisões do Cade, duas vão parar no Poder Judiciário. Desde 2002, o Cade decide, em média, 500 processos por ano e recebe de volta 200 contestações de empresas na Justiça.

Como nem todas as decisões levam a condenações, isso significa que praticamente toda empresa condenada pelo Cade por cartel ou obrigada a vender parte de seus ativos procura a Justiça para não cumprir as determinações do tribunal administrativo.

O resultado é que das 155 condenações por cartel e práticas anticoncorrenciais, ocorridas entre 1994 e 2005, somente 25 foram cumpridas. Isso representa apenas 16,2% do total. Ao todo, 81,8% das condenações por cartel não estão sendo aplicadas por força de decisões judiciais.

Nas fusões e aquisições, a taxa de cumprimento das decisões é maior. O Cade impôs restrições a 163 negócios entre 1994 e 2005. Dessas decisões, 62,3% foram cumpridas. O problema aqui é que, nas decisões não cumpridas, estão fusões e aquisições importantes, como a compra da Garoto pela Nestlé (vetada pelo Cade em fevereiro de 2004) e a imposição de restrições à aquisição de oito mineradoras pela Vale do Rio Doce (decidida em agosto de 2005).

A maior taxa de cumprimento de decisões do Cade está nos processos menos relevantes: as multas pelo atraso na apresentação de fusões. Nesses casos, 78,8% das multas são pagas e os valores costumam girar em torno de R$ 120 mil, o que é muito pouco perto do faturamento milionário das empresas que submetem seus negócios ao Cade. Essa imposição de multa por atraso não se compara a uma condenação por cartel ou ao veto a uma fusão.

O procurador-geral do Cade, Arthur Badin, admite que o excesso de recursos pode levar a uma situação inusitada: a transformação do Cade em um mero guichê. Como todas as decisões são levadas à Justiça, os juízes, e não os conselheiros do Cade, se tornam os efetivos implementadores das políticas de concorrência no Brasil.

"Assistimos a um processo de progressiva judicialização da política de defesa da concorrência, que, nos últimos anos, deixou o seu 'locus' original, o Cade, e passa cada vez mais a se fazer presente no âmbito do Poder Judiciário", afirmou Badin.

Essa "judicialização" leva a uma disputa sem fim entre o órgão antitruste e as companhias. Uma condenação do Cade à Xerox, de 1991, tramita até hoje no Judiciário. O processo está, desde 2001, no Tribunal Regional Federal (TRF) de Brasília e deve demorar pelo menos quatro anos para ter decisão definitiva.

Outro processo - uma condenação do Cade à White Martins, em 2002 - deve demorar mais dez anos no Judiciário, segundo estimativas do órgão antitruste. A empresa foi condenada, na época, a pagar R$ 24 milhões por não vender o excedente de gás carbônico a concorrentes. O gás carbônico é utilizado em hospitais e para a fabricação de refrigerantes. Trata-se de um mercado bilionário.

O processo contra a White Martins teve início em 1997. Foram necessários cinco anos para a condenação do Cade. A Justiça chegou a reconhecer a condenação numa sentença de mérito, mas essa decisão foi suspensa e o caso só deve ser solucionado pela Justiça na próxima década.

Com essa demora da Justiça em analisar questões de política de concorrência, há o risco de os casos mais importantes da história recente do Cade ficarem anos sem solução. A compra da Nestlé pela Garoto está longe de ter uma decisão final. O caso Vale também vive uma "via crucis" no Judiciário, onde não há sentença definitiva.

O Cade está procurando contra-atacar e, neste ano, reforçou o processo de inscrição do nome das empresas inadimplentes na dívida ativa. De janeiro para cá, o Cade inscreveu R$ 598 milhões em dívidas de empresas que, por força de recursos à Justiça, se recusaram a cumprir as determinações do órgão antitruste. O valor é o mais alto da história do Cade. Até 2006, pouco mais de R$ 150 milhões haviam sido inscritos na dívida ativa.

Este ano também foi registrado outro recorde na relação entre o Cade e as empresas. Ao todo, 17 companhias tiveram o nome inscrito no Cadin - o cadastro de inadimplentes - pelo Cade. São empresas que foram multadas e se recusaram a pagar. A Natura, por exemplo, sofreu uma multa considerada pequena para uma grande companhia: foi condenada a pagar R$ 127 mil em 2004. A empresa não pagou a foi inscrita no Cadin com a dívida corrigida, em R$ 218 mil. Até o ano passado, apenas 12 empresas tinham sido inscritas pelo órgão antitruste no Cadin. Neste ano, este número saltou para 29.

A cobrança às empresas aumentou porque elas estão indo mais à Justiça. Essa corrida das empresas ao Judiciário segue a tendência de decisões mais rigorosas do órgão antitruste e de crescimento de operações contra cartéis. Em 2003, o Cade impôs restrições a apenas sete fusões. Dois anos depois, as restrições atingiram 37 fusões e aquisições. As condenações por cartel e outras práticas prejudiciais à concorrência também aumentaram: passaram de 11 condenações, em 2003, para 25, em 2005.

O problema para o Cade é a facilidade com que as empresas obtêm liminares. O procurador-geral do órgão conta que existem processos em que o juiz substitui a decisão do Cade "de forma absolutamente não técnica".

Um juiz suspendeu a decisão do órgão antitruste de exigir que a Petrobras e a White Martins dessem publicidade aos preços praticados no consórcio Gemini (de ambas as empresas), sob a alegação de que não estava claro que a estatal tinha poder de monopólio no gás natural. Nos autos do processo, entretanto, havia dados da Agência Nacional do Petróleo (ANP) mostrando que a Petrobras detinha 95% das importações e 90% da produção de gás natural.

Em outro caso - a união entre as lojas Dufry e Brasif, que atuam nos "duty free" nos aeroportos -, um juiz ampliou o prazo de uma cláusula de não-concorrência entre ambas de cinco para dez anos. O problema é que o Cade tem, há alguns anos, um entendimento consolidado de que essa cláusula (que permite que empresas não concorram entre si) só pode durar por, no máximo, cinco anos. O juiz dobrou o prazo da não-concorrência, sem dar qualquer justificativa econômica para tanto.

Badin afirma que, apesar desses casos, o Judiciário também dá exemplos de que sabe reconhecer a importância das decisões do Cade. No caso do "cartel das britas" - a condenação de 17 empresas que fraudaram o mercado de pedras usadas pela indústria da construção civil -, a Justiça chegou a uma sentença em menos de um ano e reconheceu o cartel, condenado após operação de busca e apreensão de documentos na sede das pedreiras e do sindicato do setor.

Das 17 empresas condenadas, 16 foram à Justiça na tentativa de impedir a aplicação da condenação. Mesmo com a rapidez inicial da Justiça, este caso também deve demorar anos para ser concluído.