Título: Surpreso, Setubal elogia governo do PT
Autor: Janes Rocha
Fonte: Valor Econômico, 17/01/2005, Finanças, p. C8

Em meados dos anos 80, Olavo Egydio Setubal estava em pé de guerra com os "sindicalistas do PT". À sua pré-candidatura ao governo de São Paulo, o Sindicato dos Bancários, comandado pelo hoje ministro Luiz Gushiken, respondeu com um amplo ataque a ele e ao Banco Itaú. A ponto de provocar uma "corrida ao banco", que poucos tomaram conhecimento, relatou Setubal em uma palestra para estudantes da Universidade de São Paulo. O banqueiro não teve dúvida: conseguiu um mandado judicial para a polícia invadir o sindicato e apreender panfletos e cartazes considerados ofensivos. Não é de estranhar que Setubal tivesse ficado particularmente preocupado quando os "sindicalistas do PT" chegaram ao poder, em 2002. Mas a preocupação deu lugar à surpresa quando constatou que aquelas pessoas que temia propuseram (e fizeram) "um governo extremamente eficiente", como hoje ele define a gestão de Luis Inácio Lula da Silva. Há 30 anos fora do comando executivo do Itaú, Olavo Setubal, presidente do Conselho de Administração do grupo Itaúsa, é um observador sensível da política, da economia e da sociedade brasileira, como demonstra nessa entrevista. Ele falou ao Valor em sua ampla sala no edifício da Itaúsa, cercado de objetos e livros de arte. Aos 82 anos, com ótima saúde, ele trabalha diariamente naquela sala, ajudando a equipe comandada pelo filho, Roberto Setubal, com conselhos e diretrizes, colaborando na estratégia do 2º maior banco privado do país. Valor: O Sr. sempre foi um grande crítico do sindicalista Lula. Hoje, no terceiro ano de seu governo, que avaliação faz do presidente Lula? Olavo Setubal: Primeiro devo dizer que não era crítico do Lula. Ele era um líder sindical cuja ascenção eu acompanhei desde o início, pelo meu interesse na sociedade paulista. No início de sua carreira ele tinha uma grande influência marxista que foi perdendo ao longo dos anos. Portanto o Lula de hoje não é o mesmo de 30 anos atrás. Na primeira campanha para Presidência da República, o Lula disse que ia fazer regulamentos de maneira que as empregadas domésticas comessem na mesa com os patrões. Hoje ele tem uma visão absolutamente moderna da vida, aceitando as diferenças e procurando diminuí-las de forma paulatina. Valor: Na sua visão, o Lula de hoje está fazendo um bom governo? Setubal: Ele está fazendo um governo extremamente eficiente, porque está conseguindo operacionalizar uma economia estável, coisa que o Brasil não tinha há 50 anos, se é que teve uma economia capitalista estável, com moeda estável. E manteve claramente a visão da necessidade da estabilidade monetária. O Fernando Henrique (Cardoso, ex-presidente) foi o primeiro político que se elegeu com base na estabilidade da moeda. Essa premissa, que é a estabilidade da moeda, acho fundamental para o desenvolvimento político e social do país. Valor: O Sr. esperava mais do Lula, um presidente trabalhista, do que a continuidade do governo Fernando Henrique? Setubal: Acho que a continuidade do governo Fernando Henrique na parte econômica já foi uma certa surpresa porque realmente a linha que ele (Lula) transmitia era de mudança, dava uma impressão que era uma mudança por ruptura, e não mudança por continuidade como ele está aplicando. Valor: O Sr. se surpreendeu? Setubal: Eu tive a surpresa que o Brasil todo teve, nem maior nem menor. Os seguidores do Lula, muitos dos intelectuais que apoiavam o Lula, inclusive a Igreja, acho que tiveram uma surpresa maior do que a que eu tive. Eu fui muito marcado pela Carta aos Brasileiros (documento divulgado pelo Partido dos Trabalhadores pouco antes das eleições de 2002). Isso aqui no Itaú teve uma grande repercussão e foi muito estudada e muito destacada nos nossos debates internos, quando programamos nossas atividades. Valor: O que o Sr. pensou quando leu a Carta aos Brasileiros? Setubal: Me convenci que a posição do Brasil caminharia nesse sentido. Valor: Como o Sr. analisa a política econômica e monetária baseada no sistema de metas de inflação? Setubal: É a solução e tem que ser levada às últimas conseqüências. Se (a meta) é grande, pequena, se deve ser o centro ou a periferia, são nuances sem relevância. Temos que aceitar a premissa de que a estabilidade da moeda é fundamental para o desenvolvimento. Fora da estabilidade da moeda não há desenvolvimento viável e sustentável. E isso nos leva a mecanismos de política monetária como o Brasil tem adotado, que a grande maioria dos Bancos Centrais do mundo capitalista adota. Valor: Mas a taxa de juros para sustentar o sistema de metas de inflação não estaria muito alta? Setubal: Sim, está muito alta. Isso é uma das coisas que me deixam surpreendido. Acho que uma parte da razão das altas taxas de juros é que a inflação habituou o brasileiro a trabalhar com taxa alta. Antigamente era vendido a ele a idéia de que aquilo era correção monetária. Mas ele se habituou a taxas muito altas de correção monetária, passou para o juro, mais ou menos imperceptivelmente. Na prática, a população não distingue muito correção monetária de juros, por isso o sistema de prestação (financiamento ao consumo) tem um grande êxito no Brasil. Valor: É aquele hábito dos brasileiros de fazer um parcelamento e, desde que caiba no bolso dele, não se preocupa com o custo do financiamento? Setubal: É, ele considera correção monetária ou juros como parte do custo do produto comprado. Ele não discute que aquela parte do custo pode ser diminuída. Ele aceita aquilo com muita naturalidade. Valor: Como se muda essa mentalidade? Setubal: A estabilidade vai trazer, aos poucos, todos os fatores que existem em outros países do mundo. Quanto tempo vai levar, não sei. Mas vai levar algum tempo, porque os brasileiros não aceitam com facilidade a idéia da regulação financeira. O que se vê hoje todos os dias nos jornais são os prefeitos contra a responsabilidade fiscal, todos dizendo que não podem governar dentro dos rigores de uma política financeira tão rígida. E por quê? Porque os eleitores deles aceitam a inflação com facilidade. Não é como na Alemanha, onde inflação é um termo absolutamente repudiado. O brasileiro é formado na linha do Juscelino (Kubitschek, ex-presidente): entre o desenvolvimento e a estabilidade, prefere o desenvolvimento. Valor: O Itaú está fazendo 60 anos. Em uma de suas palestras na universidade, onde falava sobre sua vida, o Sr. relatou um encontro que teve certa vez com Amador Aguiar (fundador do Bradesco) em que ele teria dito ao Sr.: "Olha Olavo, você vai passar todos eles (os bancos concorrentes), mas a mim não". Inclusive o Sr. constatou que "a profecia dele é válida até hoje". De fato, o Itaú nunca ultrapassou o Bradesco. Setubal: Ele disse isso a mim quando ainda estava iniciando minha carreira bancária. Eu tinha muito contato com o Amador, um homem que eu admirava profundamente. Era um homem prático, com uma intuição extraordinária que o levou a formar o Bradesco, hoje uma instituição que faz orgulho ao Brasil. Valor: Sim, mas ainda hoje o Itaú é o segundo. O Sr. ainda gostaria de desmentir a "profecia" do Amador Aguiar? Setubal: Quando o Itaú começou a tomar corpo, ele adotou como paradigma o estilo Bradesco: ocupar o Brasil inteiro, aumentar imensamente as bases de sua clientela. De uns anos para cá, depois que o Roberto (Setubal, filho de Olavo e atual presidente) assumiu a direção do banco, adotou a tese americana que o objetivo de uma empresa é criar valor para seus acionistas. Isso levou o Itaú a uma política diferente do Bradesco. Valor: Então não há mais a preocupação com o primeiro lugar?

A população não distingue correção monetária de juros, por isso o sistema de prestação tem êxito no Brasil"

Setubal: A competição é diferente, com motivações diferentes. Claro que ambos têm as mesmas regras de solidez e expansão, mas as decisões são diferentes. Valor: Passadas as fases da entrada dos estrangeiros, das grandes privatizações, que futuro o Sr. vê para o sistema bancário brasileiro? Setubal: Eu sempre disse que os bancos brasileiros modernos e grandes iriam enfrentar tranqüilamente os estrangeiros, e foi o que aconteceu. Nós é que temos uma visão clara da situação do Brasil, entendemos da sociedade brasileira e, principalmente temos uma clara visão de como o sistema regulador brasileiro, o sistema judicial se comporta. Os estrangeiros chegam aqui e pensam que serão regulados pelo Federal Reserve (Fed, o banco central dos EUA) e pelo sistema judicial americano. E não é. Valor: Por isso os brasileiros dominaram o mercado. Setubal: Sim, o mercado bancário hoje está dominado por cinco bancos, dois estatais e três particulares. E há alguns bancos médios subindo, vão crescer, como o Banco Votorantim, ligado a um grupo industrial com situação sólida, que gera uma imagem que ele explora com grande competência. Valor: Qual o desafio para os bancos daqui para frente? Setubal: O grande desafio agora é ir ou não para o exterior. O Itaú já foi um pouco. Como fizeram os bancos espanhóis, por exemplo, que cresceram muito na Espanha e depois viram que não podiam mais se expandir em seu país, já tinham se consolidado até o limite possível e passaram a se expandir no exterior. O Itaú criou uma grande equipe, manda todo ano dez funcionários para fazer mestrado no exterior, tem grandes sistemas de preparação de pessoal com visão de exterior e isso no futuro deverá dar uma diferença para o Itaú. Valor: Como o Sr. analisa o recente avanço dos bancos, inclusive o Itaú, sobre as classes "C" e "D", com crédito e até com a abertura de contas correntes para essas pessoas? Setubal: Isso para mim é fruto da taxa de juros muito alta, que a população está disposta a pagar como eu falei antes. Isso leva os bancos a assumir riscos muito grandes, eles estão dando empréstimos sem garantia real, sem cadastro, apenas com algumas indicações estatísticas, aceitando que terão alto nível de perda, mas que é compatível com o alto nível de juros. Os bancos estão indo porque vêem que têm uma margem muito grande. Quem a meu ver mostrou com clareza esse mercado foi a Casas Bahia. Samuel Klein (controlador da rede) teve clara visão que ele empresta para pessoas que ele olha na cara, e não está preocupado com garantias. De certa forma, o êxito da Casas Bahia é que arrastou outros a entrar nesse setor e finalmente os bancos mais tradicionais acabaram entrando. Valor: Bem, mas a expectativa é que um dia os juros vão cair... Setubal: Sim, vão sair desse nível absurdo. Mas nos Estados Unidos, por exemplo, os juros das prestações são imensamente maiores que as taxas do Federal Reserve (referindo-se à taxa básica). Então um dia o juro vai cair no Brasil, mas o da prestação não vai cair nos níveis que o país sonha, os níveis burocráticos, legais de antigamente, o juro de 12% que têm origem quase religiosa. Isso acabou, vai cair dentro da competição. Valor: O Sr. está chegando aos 82 anos. Passou pela academia, pela política, foi prefeito de São Paulo, ministro das Relações Exteriores e quase candidato a governador. Do ponto de vista histórico, o Sr. acha que o Brasil melhorou? Setubal: Eu digo uma coisa: tudo melhorou no Brasil. Talvez a única coisa que não tenha melhorado foi a segurança pessoal. Mas o resto, melhoramos o ensino, a comida, a produção, a indústria, tudo melhorou. Até as flores de hoje são melhores. Mas ainda não nos desenvolvemos o suficiente para chegar ao nível dos países desenvolvidos. Valor: O que falta para isso, na sua opinião? Setubal: A evolução histórica do Brasil é fundamental para podermos avaliar onde vamos chegar. O Brasil atravessou estes últimos anos o período que foi, no cenário mundial, pós-queda do Muro de Berlim. O fracasso da experiência russa, do socialismo aplicado, teve enorme influência na evolução do Brasil nos últimos 10 anos. O capitalismo passou a ser a única doutrina dominante. Com isso nós também evoluímos menos no sentido da análise do capitalismo. E esse é o grande desafio do Brasil, desenvolver um país economicamente viável, dentro das suas realidades, rapidamente para atender o desejo da população. Valor: O Sr. acha que a elite errou ao não colaborar com a promoção de uma maior justiça social? Setubal Toda a América Latina tem esse defeito. A colonização, feita por Portugal e Espanha formou uma elite com a imigração da elite desses países e toda a região se desenvolveu com base nessa elite, explorando a mão-de-obra, ou de índio ou de escravo. Formou-se uma sociedade dual em toda América Latina. Os quadros dominantes dos países latino-americanos não são oriundos das classes mais baixas. O grande desafio é fazer com que essas grandes massas marginalizadas há séculos, na formação histórica, sejam integradas no mundo moderno. Valor: A elite é, então, a raiz da injustiça social e da concentração de renda? Setubal: Falta educação, falta saúde. E tudo isso para ser feito precisa ser pago. E a classe média refuta pagar isso, porque acha que já tem um nível de vida inferior à classe média dos países desenvolvidos. Então há uma grande dificuldade para todos os governos de tirar da elite, que na verdade não forma uma base tributária suficiente para enfrentar os problemas do país. Valor: O Sr. acha que pagamos poucos impostos, que a elite e a classe média deveriam pagar mais ainda para financiar as demandas dos mais pobres? Setubal: Não. Eu acho que o nível atual de impostos é o máximo compatível com o desenvolvimento econômico dentro do regime de livre iniciativa. Mas esse nível de impostos não conseguirá integrar as massas pobres na velocidade que desejaríamos. Valor: Que solução o Sr. teria para esse problema? Setubal: Continuar no caminho que estamos andando, lenta e continuamente. O grande perigo é querermos romper esse ciclo com propostas mirabolantes ou mágicas. A experiência marxista fracassou, outras experiências ditatoriais fracassaram, só nos resta a experiência democrática, que é um processo lento e altamente debatido de desenvolvimento, não é um processo mágico. Valor: Então estamos a caminho da solução? Setubal: Procurar melhorar a educação, fazer a distribuição de recursos possível e não a idealista, porque realmente a classe média não quer aumentar sua contribuição para as classes pobres, isso é uma tensão social permanente no Brasil e na América Latina.