Título: A nova característica do saneamento básico no Brasil
Autor: Bonelli, Claudia
Fonte: Valor Econômico, 18/06/2007, Opinião, p. A16

A evolução da prestação dos serviços de saneamento básico no Brasil passou por quatro fases distintas. A primeira fase, entre 1950 a 1970 e que corresponde ao início da industrialização do país, foi marcada pelo surgimento de órgãos ou empresas municipais de saneamento básico. No início dos anos 70, quando se consolidou definitivamente a urbanização do Brasil, o sistema municipal mostrou-se insuficiente e inadequado para atender à crescente demanda - especialmente em regiões metropolitanas. Nessa época, pressionado pela necessidade de incrementar a oferta dos serviços de saneamento, o governo federal implementou o Sistema Nacional de Saneamento, integrado pelo Plano Nacional de Saneamento (Planasa), pelo Banco Nacional da Habitação (BNH) e pelo Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), cuja principal característica era o incentivo à transferência da prestação dos serviços para Companhias Estaduais de Saneamento Básico (CESB's), financiadas em muitos casos pela União.

Na década de 80, devido à escassez de recursos públicos para a realização de investimentos, ao aumento no endividamento estatal e à extinção do BNH, o Sistema Nacional de Saneamento passou a apresentar sinais de desgaste e entrou em um período de estagnação que perdura até os dias atuais. Ademais, a Constituição Federal de 1988, promulgada durante essa fase, não definiu de modo preciso de quem é a titularidade dos serviços de saneamento básico. Por fim, durante a década de 90 e início do século XXI surgiram tentativas de se transferir a prestação dos serviços de saneamento à iniciativa privada, as quais, em virtude da falta de regras claras e uniformes para a prestação destes serviços, bem como da inadequação da aplicação pura e simples das regras contidas na Lei Federal nº 8.987/95 ao setor de saneamento básico - em especial no que tange à estrutura tarifária e à concessão de subsídios - não obtiveram o êxito esperado.

Em síntese, o setor de saneamento básico no Brasil apresenta atualmente a seguinte configuração: I) indefinição sobre a competência para regulação e prestação dos serviços de saneamento; II) predomínio das companhias estaduais na prestação dos serviços (aproximadamente 3.700 municípios), muitas delas operando sem contrato de concessão e/ou com base em contratos defasados e insuficientes; III) sucateamento de muitas das empresas estatais (estaduais e municipais) prestadoras de serviços de saneamento, devido à escassez de fontes de financiamento e ao endurecimento das regras de contingenciamento de crédito ao setor público; e IV) dificuldades financeiras enfrentadas pelas concessionárias privadas decorrentes da ausência de regras claras sobre aspectos financeiros (definição de tarifas, concessão de subsídios etc) e sociais (formas de coibir e evasão, as fraudes, compensação por tarifas sociais etc).

Assim, o setor de saneamento, em virtude da ausência de uma legislação clara que o discipline foi um dos únicos setores que ficaram excluídos das reformas estruturais na prestação dos serviços públicos ocorrida na década de 90, reformas que possibilitaram o incremento no fluxo de investimentos e a melhoria na qualidade da prestação dos serviços em diversas áreas (por exemplo, telecomunicações e energia elétrica).

-------------------------------------------------------------------------------- O setor de saneamento foi um dos únicos excluídos das reformas estruturais na prestação dos serviços públicos na década de 90 --------------------------------------------------------------------------------

Diante desse quadro, a Lei do Saneamento foi editada com o claro propósito de iniciar uma nova fase na gestão e prestação dos serviços de saneamento básico, na qual se pretende abandonar os modelos atomizados de relacionamento entre os agentes do setor e apostar em uma nova fórmula para resolver - ou ao menos amenizar - os problemas acima apontados: a "parceria".

São inúmeros os mecanismos na lei que privilegiam a utilização das parcerias - tanto das "parcerias público-públicas" quanto das parcerias público-privadas - com o objetivo de incrementar e desenvolver os serviços de saneamento básico.

Quanto às "parcerias público-públicas", elas incentivam, em vários dispositivos, a gestão associada e a formação de consórcios públicos entre Estados e municípios para a regulação, fiscalização e prestação dos serviços de saneamento básico. Estabelece, por exemplo, que: I) as atividades de regulação e fiscalização dos serviços prestados no âmbito regional poderão ser exercidas por consórcio público integrado pelos titulares do serviço e II) os titulares dos serviços públicos de saneamento básico poderão delegar a organização, a regulação, a fiscalização e a prestação desses serviços a outros entes da Federação, nos termos do art. 241 da Constituição Federal e da Lei Federal no 11.107/05. A opção adotada pelo legislador ordinário visa, por um lado, suprir - mesmo sem entrar no mérito da questão - a omissão do legislador constituinte acerca da titularidade da prestação dos serviços de saneamento básico e, por outro, possibilitar que os serviços de saneamento básico continuem, quando for mais adequado, a ser prestado por companhias estatais.

No que concerne às parcerias público-privadas, a Lei do Saneamento também desempenha um papel extremamente importante. Em primeiro lugar, cria um ambiente que proporciona maior segurança jurídica aos investidores, na medida em que prevê regras que disciplinam questões importantíssimas como regime tarifário, subsídios e cortes por inadimplemento. Ademais, atribui papel de destaque a temas como o planejamento e a regulação do setor, indispensáveis para a realização de investimentos de longo prazo. Por fim, recoloca o tema da "financiabilidade" do saneamento básico na pauta de discussões, ensejando ações concretas como a inclusão do setor como um dos principais objetivos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), bem como o desenvolvimento de novas linhas de crédito ao setor privado junto a instituições financeiras oficiais.

Assim, a recém-promulgada Lei do Saneamento apresenta inúmeros aspectos pontuais positivos que podem auxiliar no desenvolvimento do setor. Contudo, a sua maior virtude é a de representar o início de uma nova fase na gestão e na prestação dos serviços de saneamento básico no Brasil: a "fase das parcerias", tanto das parcerias entre os entes da Federação, quanto das parcerias entre o setor público e o privado.

Claudia Bonelli é advogada, sócia de Tozzini Freire Advogados e especialista em PPP.