Título: A integração da América do Sul
Autor: Abdenur, Roberto
Fonte: Valor Econômico, 12/06/2007, Opinião, p. A15

O recente episódio do ataque verbal de Chávez ao Congresso nacional dá ensejo a reflexão sobre certos aspectos da política de integração regional ora praticada pelo Brasil. A construção de um amplo projeto de integração na América do Sul apresenta à diplomacia o desafio de conciliar o pragmatismo inerente à fria defesa do interesse nacional com não pequena dose de idealismo. Só a visão de um futuro melhor mediante a convergência entre economias e sociedades pode dar constância e sustentação a décadas, ou mesmo gerações, de esforços por sobrepor interesses comuns de longo prazo a interesses nacionais divergentes ou mesmo conflitantes no presente imediato.

Mas problemas surgem quando o idealismo subjacente ao processo de integração é distorcido - ou radicalizado, se se preferir - a ponto de passar ao plano ideológico. Nos últimos anos tem estado presente nas posturas brasileiras a idéia de que afinidades político-ideológicas proporcionariam mais coesão à região, dariam fluidez ao projeto integracionista e propiciariam ao Brasil o exercício de uma supostamente bem-vinda e placidamente aceita liderança. Um dos mais tradicionais preceitos de nossa tradição diplomática na América do Sul - o de não nos imiscuirmos nos processos eleitorais dos vizinhos - foi posto de lado quando Brasília manifestou publicamente sua preferência por Morales e Corrêa, nas eleições na Bolívia e Equador, e desdobrou-se em gestos de simpatia por Chávez em sua campanha por mais uma reeleição. Em paralelo, e de certo modo em consonância com a idéia do alastramento das afinidades ideológicas, fez-se opção pela ampliação a toda a velocidade, e a qualquer preço, do processo de integração no subcontinente. Enquanto fermentavam tensões dentro do Mercosul, lançou-se desde logo, ainda sem maturação suficiente (como ilustrado pela ausência de Kirchner no evento, realizado no Peru), a Comunidade Sul-Americana. Esta também importante iniciativa, que melhor caberia algo mais adiante, uma vez revigorado o Mercosul e adiantados outros aspectos da integração, como as interconexões em infra-estrutura, viu prejudicada sua credibilidade quando há poucas semanas, por sugestão de Chávez, passou da noite ao dia a chamar-se "União Sul-Americana". Como se fosse possível queimar etapas no árduo empreendimento da integração mediante truques semânticos. A Europa precisou de quase meio século para o percurso zona de livre - comércio - união aduaneira - mercado comum - comunidade - União Européia. Essa prematura mudança de nome suscita a impressão de inconsistência e volubilidade em relação ao empreendimento de nossa Comunidade.

Os fatos recentes em nossas relações com Morales e Chávez evidenciaram a precariedade da integração na área energética. A nacionalização dos hidrocarbonetos na Bolívia, em si mesma causa justa e válida, não precisava dar-se necessariamente sob a forma de gestos e medidas contundentes contra o Brasil (coisa que ocorreu, sabidamente, com a instigação e o apoio de Chávez). Está agora configurado quadro de sérias incertezas numa área nevrálgica, qual seja, a da segurança energética do Brasil. O sonho da auto-suficiência energética da região em seu conjunto está gravemente comprometido - não por falta de recursos, mas pela inconfiabilidade do suprimento. Essa situação pode ter novos desdobramentos caso se confirmem os sinais de questionamento pelo Paraguai ao Tratado de Itaipu.

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A integração da América do Sul enfrenta hoje mais problemas do que antes. Em vez da desejada coesão, surgiram amplas fissuras. O socialismo bolivariano do século XXI constitui foco ideológico que não só se afasta, como nega, contradiz e combate os pressupostos mesmos do projeto - economia de mercado, livre comércio, regionalismo aberto e, base de tudo, democracia. Em meados do ano passado, em ambiente de incertezas quanto ao resultado das eleições presidenciais, apressou-se o governo brasileiro em procurar fazer da Venezuela membro pleno do Mercosul, sem transitar pelo estágio de associação. Está claro na presente etapa que essa iniciativa apresenta riscos. O Brasil passaria a ter no Mercosul ambiente ainda mais desfavorável, dada a clara postura de Chávez de apoiar os demais membros em suas queixas e reivindicações contra nós, e o Mercosul teria prejudicada sua imagem e credibilidade, tornando-se mais difícil, ou mesmo impossível, avançar em negociações com o "Norte" - não só os EUA, mas também a União Européia, agora mais reticente perante Chávez, após o episódio das críticas por ela feitas ao fechamento da RTCV.

Fato grave seria, ademais, a erosão da credibilidade da cláusula democrática do Mercosul, compromisso cuja sustentação é fundamental para região que até pouco mais de uma década sofreu brutais ditaduras. Faz-se claro, a esta altura, ser demasiado otimista a suposição de que o Brasil , ao promover a entrada plena da Venezuela no Mercosul, poderia mais facilmente "domar" os ímpetos de Chávez. Da mesma maneira, é exagerado o argumento dos ganhos comerciais. Estes viriam naturalmente com a Venezuela como membro associado. E não podemos "mercantilizar" indevidamente o processo de integração. Há um ponto a partir do qual vantagens econômicas não devem se sobrepor aos custos políticos, sob pena de, paradoxalmente, ver a lógica comercial resultar mais prejudicial do que benéfica ao Mercosul. Cabe ter em mente também que muito do que Chávez oferece como favores ou oportunidades de parceria está lastreado nos recursos provenientes dos altos preços do petróleo. Em outras palavras, lastreado em subsídios, implícitos ou explícitos . E em decisões políticas, não na boa lógica da viabilidade econômica. Não faz sentido se basearem iniciativas e projetos em factóides com escassas possibilidades de materialização e sobrevivência. Menos ainda quando estejam em jogo aspectos da segurança energética do Brasil.

A ironia de nossa atual política para a região está em que o ardor e a pressa no avanço da integração podem resultar menos em estímulos do que em entraves ao processo. Este é o caso com a questão da acessão plena da Venezuela ao Mercosul. É assim importante que o Congresso nacional proceda a cuidadosos debate e reflexão sobre o assunto. Não à guisa de retaliação pelas agressões a ele feitas por Chávez, mas no cumprimento objetivo, sereno e soberano de suas atribuições constitucionais. Por coerência com nosso compromisso democrático, para a defesa dos interesses brasileiros, e para a preservação daquele que é o cerne mesmo da integração regional, o Mercosul.

Roberto Abdenur é ex-embaixador do Brasil nos EUA.