Título: Notas para ajudar a escolher o rótulo
Autor: Lucki, Jorge
Fonte: Valor Econômico, 11/06/2007, EU & Investimentos, p. D6

Uma das minhas propostas para esta coluna em 2007 era trazer e comentar periodicamente notícias de vinho publicadas recentemente na imprensa internacional, sempre que houvesse temas que pudessem interessar aos leitores do Valor. Ainda que desde meados de março, quando essa idéia foi aqui implantada pela primeira vez, o mercado externo esteja agitado e, bem ou mal, matérias não faltem, um assunto em particular tem quase monopolizado a atenção do setor: a comercialização dos Grands Crus Classés de Bordeaux 2006.

Os franceses podem, em termos de vinho, ser ruins de marketing - a crise que aflige rótulos de padrão médio e baixo prova isso e eles mesmos assumem que em tempos passados, onde a concorrência quase inexistia, eram os consumidores que compravam, não eles que vendiam -, mas em se tratando dos grandes châteaux bordaleses eles são mestres. Nesse meio não há crise, ao contrário. Os melhores tintos, brancos e Sauternes bordaleses, reunidos em torno da UGCB, Union des Grands Crus de Bordeaux, e algumas outras poucas associações paralelas, sabem se promover e mantêm inabalável prestígio, com demanda (e preços) em consistente ascensão.

Esse grupo de privilegiados dispõe de um sistema de comercialização único, onde os vinhos não são vendidos diretamente pelos châteaux. Os preços são cotados numa Bolsa de Vinhos, e suas vendas efetuadas por agentes que atuam neste mercado. Além disso, os vinhos mais recentes, ainda nem engarrafados, são negociados "en primeur", modalidade semelhante às commodities no mercado futuro. A compra é feita hoje, de um produto que acabou de ser vinificado e está ainda amadurecendo em barris de carvalho. Os interessados compram um certificado que lhes dará o direito e a propriedade da bebida que será entregue quase dois anos depois.

Jorge Lucki Michel Rolland nos vinhedos do Chãteau Lascombes, em Margaux A campanha de "primeurs" começa em geral na primeira semana do mês de abril seguinte à colheita, quando a região de Bordeaux recebe gente do mercado do mundo inteiro para provar os vinhos ainda jovens. Diretamente nos châteaux ou nas sedes dos principais negociantes bordaleses procura-se avaliar a qualidade de cada rótulo e saber quais deles se saíram bem naquele ano. No começo dos anos 80 o evento reunia uma centena de jornalistas, foi crescendo e tomou tal proporção que neste último a UGCB chegou a credenciar 5 mil profissionais, entre importadores, negociantes, compradores e sommeliers, além da imprensa especializada, que tem a prerrogativa de degustar em separado.

Mais separado ainda e com todas as regalias destinadas à estrela maior é o que recebe o americano Robert Parker Jr, considerado o mais influente e poderoso crítico do setor. Suas notas podem elevar ou fazer despencar as receitas de châteaux bordaleses. A rigor, por mais que outros profissionais competentes divulguem suas avaliações - é o que todos fazem neste período -, a opinião de Parker é a que serve de baliza para que cada propriedade estabeleça seus preços.

Tanta concentração de poder tende a gerar distorções e o consumidor deve estar atento a elas. Primeiro é que, apesar de ser ótimo degustador, particularmente de Bordeaux, e ser incorruptível, Robert Parker não pode ser considerado infalível, além de, como todo ser humano, ter preferências por determinado estilo de vinhos. Sabendo disso, muitos produtores, interessados em alcançar boas notas do guru, passaram a moldar seus vinhos visando agrada-lo, abrindo mão da identidade e do terroir que eles representavam. Vale sempre como exemplo o que aconteceu com o Château Pavie, um St Emilion Premier Grand Cru Classé "B", que caiu nas graças de Parker depois que a propriedade foi comprada pelo astuto empresário Gérard Perse em 1997. O vinho mudou de cara - ficou mais encorpado e exuberante, em detrimento da elegância que o caracterizava - e conseguiu, logo no ano seguinte, alcançar altas notas do autor americano. Em contrapartida, o novo padrão do Pavie foi censurado por outras vozes importantes do meio, como a inglesa Jancis Robinson, que lhe deu notas bem baixas e o comparou a um Vinho do Porto.

Outra distorção é a conhecida "barrica do Parker", manobra utilizada por certos châteaux para conseguir melhores pontuações, que consiste em "preparar" as amostras a serem degustadas pelo critico, escolhendo barris e composições que têm mais chance de seduzi-lo - é preciso destacar que essas avaliações são sobre amostras tiradas das barricas, onde os vinhos ainda repousarão por mais de um ano antes de serem engarrafados. A bem da verdade comenta-se que esse artifício é bastante comum e direcionado também a outros formadores de opinião, fazendo com que a garrafa enviada para degustação não é necessariamente representativa da produção total.

Com todas essas ressalvas, eu, em todo caso, não desencorajaria interessados na compra de bordeaux "en primeur", mesmo porque boa parte dos châteaux da minha adega - meu "patrimônio líquido" - foi constituída dessa forma. A recomendação, na medida em que não seja possível ter acesso direto a essas provas, é, antes de mais nada, analisar opiniões de diferentes críticos com credibilidade e fazer uma média delas. Foi com essa intenção que recolhi as quatro avaliações constantes da tabela ao lado, opiniões que confio e recomendo.

Se nos rótulos mais renomados, os Premiers Grands Crus Classes (Latour, Lafite, Mouton Rothschild, Margaux, Haut Brion, Ausone, Cheval Blanc e Petrus) não há muita divergência, nos seus preços também não há engano. São os mais elevados e há muita especulação em torno deles. A tabela comparativa é útil se o foco está direcionado para os vinhos de segunda linha. É nesse grupo que estão os rótulos com boa relação qualidade/preço e podem ter boa valorização no futuro, grande atrativo para se comprar vinhos de Bordeaux antes de eles serem engarrafados.

Ainda assim, o que comprar, e mesmo se vale a pena comprar, vai depender de quanto custarem os vinhos e isso está apenas começando a ser divulgado. Esta semana, que precede a Vinexpo, feira internacional de vinhos que começa domingo em Bordeaux, é que as coisas vão esquentar. Vai ainda um tempo até os negociantes acertarem suas margens e os importadores brasileiros, eventualmente interessados em trabalhar com essa modalidade, elaborarem suas listas.

Em função dos preços que já são conhecidos, pode-se prever que, no geral, eles devem atingir algo entre 20 e 30% abaixo dos explosivos números alcançados pela safra anterior. Mesmo alardeada como uma das melhores colheitas das últimas décadas - é um pouco cedo e pretensioso afirmar isso - a política de preços dos 2005 foi muito criticada, particularmente por profissionais de mercados com muita tradição em Bordeaux, caso dos ingleses. Tal sentimento de revolta aparentemente não sensibilizou os produtores franceses, de quem se esperava uma redução mais significativa. Aliás, eram realmente os comentários e recomendações que vinham da própria região.

Isso, todavia, durou enquanto as perspectivas de que em Médoc a qualidade não tinha sido das melhores - Pomerol, principalmente, secundada por St Emilion, foram as duas regiões que se saíram melhor, em função da Merlot, casta majoritária em ambas, ter sido menos afetada pelas chuvas. Na realidade os resultados foram bem melhores do que se esperava, o que deu novo alento e sede de bons lucros aos châteaux da margem esquerda da Gironde, e é lá que está a maioria dos bordeaux com renome internacional. Vem à lembrança a frase do badalado consultor Michel Rolland durante suas andanças pelos vinhedos em 2006: "quando Médoc sofre, Bordeaux sofre". Nem ele esperava que os resultados fossem tão bons. Agora temos que pagar por isso.

colaborador: jorge.lucki@valor.com.br