Título: Terra pública não é terra de ninguém
Autor: Silva, Raimundo Pires
Fonte: Valor Econômico, 11/06/2007, Opinião, p. A10

Inferno verde, vazio demográfico, pulmão do mundo... Muitos têm sido os mitos sobre a Amazônia e danosas suas conseqüências ao nortearem projetos governamentais. Diante dos fracassos do passado e das exigências futuras para o desenvolvimento do Norte do país, é imprescindível uma ruptura com o senso comum e a discussão aprofundada sobre esse bioma continental. O problema estrutural básico da região, a falta de ordenamento fundiário, veio à tona recentemente com a decisão da Justiça Federal de Altamira, no Pará, que determinou a retirada imediata de grileiros da fazenda Curuá, a maior área grilada do Brasil, com 4,7 milhões de hectares. Não por mera coincidência, a fazenda está localizada na região conhecida como Terra do Meio, palco de alguns dos mais graves conflitos fundiários do país.

Um novo ciclo de desenvolvimento para a Amazônia, compromisso materializado no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), que prevê a recriação da Sudam (Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia), requer combate implacável à grilagem. Para isso, são necessárias uma base cadastral fidedigna dos imóveis rurais e a retomada das áreas públicas, objetivo do Programa Cadastro de Terras e Regularização Fundiária, do Ministério do Desenvolvimento Agrário.

É preciso lembrar que toda propriedade rural brasileira foi, na sua origem, terra pública. A apropriação privada só se tornou possível com a Lei de Terras de 1850, que deflagrou uma corrida pela posse da terra em que a ilegalidade não raro foi a regra. O termo "grilagem", por exemplo, tem origem em um método engenhoso e pitoresco: o documento falso era colocado em um recipiente fechado, junto com grilos vivos. Os insetos roíam parte do documento e exalavam substâncias que amareleciam o papel. Com aspecto envelhecido, o documento poderia ser utilizado para "comprovar" uma ocupação anterior à promulgação da Lei de Terras.

Ainda hoje o poder público se vê às voltas com grileiros em quase todo o país. Em muitos Estados, ocorrem fenômenos curiosos, como fazendas de dois, três ou mais "andares", tantos são os títulos com áreas sobrepostas em função da ocupação desordenada. Isso leva a absurdos, como em Ladário, no Mato Grosso do Sul, onde a soma das áreas dos imóveis rurais cadastrados é mais de seis vezes maior que a superfície territorial do município.

Mas é na Amazônia legal, região que corresponde a 60% do território nacional, que o problema da grilagem adquire dimensões colossais. Do tamanho dos territórios da Bélgica e Holanda somados, a fazenda Curuá, por exemplo, se sobrepõe à totalidade das terras indígenas Xypaia e Curuaya, da Floresta Nacional de Altamira, sobre 82% da Terra Indígena Baú e parte da Reserva Extrativista Riozinho do Anfrísio.

-------------------------------------------------------------------------------- Ao desatar o nó fundiário da Amazônia, governo cria condições indispensáveis aos investimentos para desenvolver a região --------------------------------------------------------------------------------

O emaranhado fundiário da Amazônia agravou-se com o projeto de integração nacional do regime militar, sustentado pelo mito do "vazio demográfico", como se ali já não vivessem povos indígenas, quilombolas, seringueiros e ribeirinhos. Por meio de grandes obras de infra-estrutura e incentivos fiscais a projetos agropecuários, o governo desencadeou fluxos migratórios e uma exploração predatória que se revelaram ecológica e socialmente catastróficos. O saldo desse modelo de ocupação é perceptível ainda hoje nas estatísticas de violência no campo.

Esse cenário de "terra sem lei" também favoreceu a proliferação de relações de trabalho degradantes, análogas à escravidão. Dos cerca de 18 mil trabalhadores resgatados pelo Ministério do Trabalho entre 1995 e 2005, mais de 78% estavam em Estados da Amazônia legal, 37,5% deles só no Pará. Aqui, destaca-se a reforma agrária como uma das políticas mais importantes no combate ao trabalho escravo. Assentamentos rurais têm possibilitado a inclusão social de trabalhadores resgatados. E a reforma agrária também tem sido feita nos municípios de origem e aliciamento desses trabalhadores, a maioria da região Nordeste, como forma de propiciar condições de vida digna a quem, por absoluta falta de opção, se deixa seduzir pelas promessas dos "gatos", como são chamados os agenciadores de mão-de-obra a serviço dos grileiros.

Diferentemente dos antigos projetos de colonização do regime militar, a reforma agrária é considerada hoje uma forma de garantir a ocupação não-predatória das áreas retomadas pela União. Com esse objetivo, foram criados modelos de assentamento que conciliam a produção agrícola com a conservação ambiental, como os Projetos de Desenvolvimento Sustentável (PDS), de Assentamentos Agroextrativistas (PAE) e de Assentamento Florestal (PAF).

Além disso, ao desatar o nó fundiário da Amazônia, o governo cria as condições indispensáveis às políticas públicas e aos investimentos voltados ao desenvolvimento da região. Resultados significativos já têm sido alcançados: só no município de Lábrea, no Amazonas, o Incra retomou 1,335 milhão de hectares de terras públicas. Com isso, é possível reverter o processo de expulsão sofrido nas últimas décadas pelas populações tradicionais, assegurando o seu direito à posse da terra.

A integração possível para a Amazônia não é, portanto, a de uma "fronteira aberta". Tampouco sua integração ao mercado externo, baseada numa divisão internacional do trabalho em que a região se encaixe como mera exportadora de matéria-prima. Integrar a Amazônia é reconhecer a legítima posse da terra pelos povos que ali resistiram a séculos de violência. O Judiciário tem importante papel nesse processo e a recente decisão da Justiça Federal sobre a desocupação da fazenda Curuá cria um precedente importante: o juiz proibiu o Ibama de pagar qualquer tipo de indenização aos grileiros. O recado foi claro: terra pública não é "terra de ninguém", é do povo brasileiro.

Raimundo Pires Silva é engenheiro agrônomo formado pela Esalq, mestre em Desenvolvimento Econômico, Espaço e Meio Ambiente pela Unicamp e superintendente regional do INCRA-SP.