Título: Filtro antioportunista
Autor: Bautzer, Tatiana
Fonte: Valor Econômico, 06/06/2007, EU & Investimentos, p. D1

Os bancos de investimento já têm as armas para reduzir expressivamente a participação de pessoas físicas que entram em ofertas públicas iniciais (IPO na sigla em inglês) só para vender as ações no dia de estréia na bolsa. A estratégia, conhecida como "flipping", vem sendo estimulada por algumas corretoras. A pedido dos bancos, a Bolsa de Valores de São Paulo (Bovespa) montou um banco de dados com o histórico do comportamento dos investidores pessoa física em IPOs. Os bancos definirão critérios para considerar alguns CPFs como "especulativos".

Embora não haja obrigação legal, as empresas que pretendem entrar no novo mercado costumam oferecer 10% da emissão para pessoa física.

A partir do critério definido pela empresa emissora e banco coordenador, a Bovespa criará para cada oferta duas categorias de investidores: os preferenciais e os especulativos - ou não-preferenciais. Poderá ser considerado como investidor não-preferencial, por exemplo, o que tenha vendido suas ações nos primeiros três dias após a estréia nas últimas três ofertas, ou o que tenha vendido no primeiro dia nas últimas cinco ofertas.

O superintendente-geral da Bovespa, Gilberto Mifano, diz que o critério terá que ser explicitado pelos coordenadores no aviso ao mercado. Por isso, as ofertas já em andamento não devem usar a restrição. Mas a elaboração do primeiro ranking já está em discussão para um IPO ainda em fase inicial.

O processo de reservas não vai mudar. O cliente declara o interesse e o valor desejado à corretora. Os dados dos CPFs são enviados à Bovespa que, considerando os critérios do emissor, definirá a lista de clientes preferenciais. Investidores "flippers" poderão ficar de fora de operações disputadas. Mas Mifano não teme contestações legais porque o IPO é um processo em balcão e a distribuição de ações, arbitrária, diz. Seria diferente se fosse venda em bolsa, onde não se pode negar a venda se o preço for o melhor.

Os bancos coordenadores reclamam há algum tempo do alto índice de vendas imediatas por investidores de varejo e da falta de acesso a dados para barrar os "flippers" pessoa física da mesma forma como são barrados investidores institucionais. Por exemplo, fundos de investimento que vendem muito rapidamente participações compradas em IPOs correm o risco de receber um lote menor ou até ficar sem ações nas próximas aberturas de capital do mesmo coordenador.

No mercado, há comentários de que corretoras financiam seus clientes para o "flipping". Como a liquidação da compra no IPO e venda na bolsa ocorre no mesmo dia, o cliente só recebe um cheque com a diferença de preços em caso de alta no primeiro dia (ou paga se o papel cair), sem comprometer recursos próprios para a compra do papel. Em alguns casos, o ganho é dividido entre o cliente e a corretora.

A chance de ganhar com ações no primeiro dia tem sido maior do que a de perda. Em média, as ações sobem entre 10 e 15% nas ofertas bem-sucedidas, enquanto a queda tem sido menor, de até 5%, quando a demanda pelo papel está ruim. "É um jogo matemático que não ajuda em nada a fortalecer a pulverização do mercado acionário", esbraveja um executivo de banco de investimento muito ativo no segmento, que prefere não ser identificado. "Temos que fazer algo para evitar a concentração de demanda de pessoa física no curtíssimo prazo", afirma o diretor de outra instituição, também entre as líderes no lançamento de ações.

"É claro que o 'flipping' não agrada aos emissores e coordenadores, que passam por todo o longo processo de abertura para ficar com um acionista por meia hora, não faz sentido", afirma o executivo da bolsa.

A própria Bovespa considera que o excesso de especulação prejudica a popularização do mercado de ações para pessoas físicas. Até mesmo as corretoras podem ser beneficiadas pelo freio à especulação, argumenta Mifano. Segundo ele, um mercado no qual os clientes não usam dinheiro e só recebem cheques da diferença "é um processo de bolha que se realimenta com a concorrência entre as instituições". As corretoras com mais clientes de longo prazo serão beneficiadas, diz ele.

"O banco de dados já está pronto", afirma Mifano. Serão usados os registros de transações da Câmara Brasileira de Liquidação e Custódia (CBLC). Ele garante que não haverá nenhuma quebra de sigilo bancário: a informação sobre CPFs considerados "preferenciais" e "não preferenciais" será passada apenas às corretoras, que já são detentoras do cadastro dos clientes. As empresas e os bancos coordenadores não receberão a informação.

A Bovespa dará palpites nos critérios estabelecidos pelos bancos. "É uma questão de bom senso, claro que não dá para considerar a venda num prazo muito longo após o IPO, como um ano, por exemplo, para excluir um cliente", diz Mifano.

A bolsa já tomou outras atitudes para coibir a especulação de corretoras nas aberturas de capital, conseqüência natural da maior atividade do mercado de ações desde 2003. Antes, para garantir uma participação maior na colocação de varejo, algumas corretoras enviavam pedidos muitas vezes superiores ao realmente desejado. A Bovespa decidiu então privilegiar o atendimento aos pedidos de menor valor no momento de distribuição das ações, resultando em cortes maiores nos pedidos mais elevados. Isso reduziu os pedidos muito distantes da realidade.

Alguns bancos de investimento também tentaram, ao longo do ano passado, estimular maior permanência do varejo com as ações compradas em IPO, propondo corretagens maiores às instituições com clientes mais estáveis. Mas a iniciativa não surtiu efeito, pela perspectiva de ganho rápido com o "flipping".

Um dos efeitos colaterais da conduta das corretoras foi a desistência maciça de investidores após a divulgação pela imprensa de fatos desabonadores às empresas que estavam descritos nos prospectos de lançamento. A desistência pode ter ocorrido não apenas por desconhecimento das pessoas físicas dos fatos descritos nas reportagens, mas também por desestímulo das corretoras, que esperavam lucrar com "flipping" e previram que as ações cairiam no primeiro dia com os fatos desfavoráveis.