Título: Reflexos da crise do gás sobre o futuro do setor elétrico
Autor: Pires, Adriano e Schechtman, Rafael
Fonte: Valor Econômico, 08/06/2007, Opinião, p. A12

A participação das usinas termelétricas no parque gerador brasileiro cresceu acentuadamente nos últimos 10 anos, passando de 4,1 GW em 1996, ou 7% da capacidade instalada total, para 16 GW, ou 18% da capacidade total, com as unidades a gás natural correspondendo a quase 60% da capacidade térmica. Prevê-se que, no futuro, esta participação deverá se ampliar ainda mais, visto que a construção de novas hidrelétricas vem enfrentando crescentes obstáculos, seja por questões ambientais, devido à imprevisibilidade de prazos e de custos para os licenciamentos, ou porque as regras atuais do setor elétrico não são atrativas para estes investimentos.

A expansão da geração termelétrica, por sua vez, esbarra na garantia de suprimento de gás natural. A eleição do presidente Evo Morales na Bolívia, seguida da nacionalização da indústria de hidrocarbonetos do país, trouxe incertezas ao mercado brasileiro de gás, que importa do país vizinho mais de 50% do gás consumido.

Diante deste novo cenário, a Petrobras lançou o Plano de Antecipação da Produção de Gás (Plangás), almejando aumentar a produção de gás na bacia de Campos, nos Estados do Rio de Janeiro e do Espírito Santo, e na bacia Santos, para elevar a oferta doméstica de gás dos atuais 27,5 milhões de m3/d para 70 milhões de m3/d, em 2011. A Petrobras prevê a operação de duas plantas de regaseificação de gás natural liquefeito (GNL) importado no primeiro trimestre de 2009, destinadas prioritariamente ao suprimento de usinas termelétricas: uma com capacidade de 14 milhões m3/d, no Rio de Janeiro, e outra com 7 milhões m3/d no Ceará.

Apesar dos planos de expansão da oferta de gás, existem dúvidas se o seu volume e ritmo serão adequados para suprir a crescente geração termelétrica, pois o suprimento de gás às termelétricas dependerá não só da oferta, mas também do consumo dos demais segmentos usuários do combustível.

A premissa do cumprimento à risca do cronograma da Petrobras para expansão da oferta de gás pode ser considerada bastante otimista. Por exemplo, o primeiro relatório sobre o Plano de Aceleração do Crescimento (PAC), divulgado pelo governo, já aponta atrasos nos projetos no Espírito Santo. Igualmente otimista é a previsão da Petrobras de início da operação das plantas de GNL no primeiro trimestre de 2009.

Sob uma ótica mais realista, pode-se assumir a possibilidade de uma defasagem de 2 anos na curva de expansão de oferta estabelecida pela Petrobras. A oferta de gás nacional alcançaria então 32 milhões m3/d em 2007, 49 milhões m3/d em 2009, 59 milhões m3/d em 2010, 64 milhões m3/d em 2011. A meta de 70 milhões m3/d seria alcançada somente em 2012. Prevê-se ainda um atraso de seis meses no início das importações de GNL, que passaria então para o segundo semestre de 2009.

-------------------------------------------------------------------------------- O cumprimento à risca do cronograma da Petrobras para expansão da oferta de gás pode ser considerada bastante otimista --------------------------------------------------------------------------------

Neste cenário, haveria sérias restrições ao despacho das térmicas sem que haja corte de fornecimento a outros consumidores. Estima-se que, em 2007 e 2008, com o gás disponível para as usinas térmicas, somente 29% e 35% de sua capacidade poderiam ser despachadas, respectivamente, e somente em 2009, com o início das importações de GNL, seria possível aumentar o despacho para 50%. Mesmo em 2011, com plena oferta de gás, as usinas termelétricas a gás ainda sofreriam uma restrição de 25% de sua capacidade já a partir de 2008, a não ser que se reduza o suprimento aos demais segmentos consumidores

Algumas evidências já mostram o frágil equilíbrio no fornecimento de gás às termelétricas. Em 2006, a Aneel, diante da constatação de um déficit localizado no suprimento de gás, retirou 3,6 GW médios de capacidade térmica da ordem de mérito do despacho do Operador Nacional do Sistema. Para incluir esta geração no planejamento da operação, a Aneel requereu que Petrobras subscrevesse um Termo de Compromisso estabelecendo um cronograma de oferta de combustível para 17 usinas a gás nas regiões Sul, Sudeste, Centro-Oeste e Nordeste, no período 2007 a 2011, com previsão de penalidade à estatal por descumprimento do acordo.

Mais recentemente, o ministro de Minas e Energia revelou que trabalha para apresentar um plano de contingência cujo objetivo principal é garantir às usinas térmicas prioridade no suprimento de gás.

O gargalo no suprimento de gás às termelétricas certamente se refletirá em aumento no preço do combustível, como forma de reduzir o crescimento do consumo. O aumento de preço do gás nacional, de mais de 20%, a partir de maio de 2007, mostra que este caminho será adotado pela Petrobras. Com a entrada do GNL no Brasil em 2009, haverá um novo patamar de preço para o gás suprido as usinas termelétricas, que passará a flutuar com o mercado internacional. Para garantir a atratividade de novas termelétricas, em março de 2007, o Ministério de Minas e Energia editou as Portarias nº 42 e 46, que permitem indexar o custo do combustível de novas usinas aos preços internacionais. Caso o aumento de preço sozinho não frear o consumo de gás, pode-se ter certeza que o governo adotará medidas para restringir o fornecimento a outros segmentos consumidores, especialmente o industrial e o automotivo.

A crise no abastecimento de gás mostra falhas no planejamento do governo e da Petrobras. E pensar que em 2003 sobrava gás no país e a Petrobras pagava à Bolívia por um gás que o país não consumia. O consumo disparou, mas faltou a Petrobrás investir no aumento da produção doméstica de gás e diversificar as importações.

Talvez a preocupação da empresa em atingir a auto-suficiência de petróleo tenha desviado sua atenção de outras áreas mais importantes no médio prazo.

Adriano Pires e Rafael Schechtman são diretores do Centro Brasileiro de Infra Estrutura (CBIE).