Título: O contrabando cultural e a lei nacional
Autor: Cassa, Ivo
Fonte: Valor Econômico, 08/06/2007, Legislação & Tributos, p. E2

O conceito de responsabilidade civil, tal como o conhecemos, vem da experiência romana. De maneira bastante sucinta, traduz-se no dever de indenizar que é atribuído a todo aquele que causa prejuízo a outrem. No início, levava-se em conta, para a determinação do responsável, o elemento subjetivo, ou seja, a culpa do causador do dano. Daí falar-se em responsabilidade subjetiva. Com o tempo, o significado da responsabilidade civil foi sendo alargado e o fato de haver ou não culpa passou a perder relevância, vindo à tona a responsabilidade sem culpa que conhecemos, fundamentalmente, por responsabilidade objetiva. Afinal, a sociedade - e com ela o direito - percebeu que mais importante do que descobrir o culpado é encontrar um meio de indenizar suas vítimas.

Se por um lado houve avanço no sentido de evitar que a vítima de qualquer prejuízo fique sem a devida reparação, por outro existe um problema que reside na impossibilidade, em grande parte dos casos, do adimplemento da obrigação, por absoluta falta de patrimônio do responsável. Neste ponto, destaca-se o papel do seguro de responsabilidade civil, que, produzindo a cooperação social para a criação de economia destinada a prover solvabilidade, garante às vítimas o pagamento das indenizações de que necessitam.

O seguro de responsabilidade civil surgiu no fim do século XIX como um instrumento destinado a garantir o pagamento de perdas e danos devidos pelo segurado ao prejudicado, como expressa o artigo 787 do Código Civil. Quem procurar nesta legislação para que serve um seguro só encontrará a serventia de um deles - justamente o de responsabilidade civil.

Mas ainda há um excessivo individualismo impregnando a consciência geral, e a função do seguro deixa de ser adequadamente percebida na sua transcendência social, na sua eficácia extra-partes. Muitos ainda acham que o seguro serve somente para garantir o patrimônio do segurado, e não para proteger as vítimas dos acidentes que pululam às pencas por aí. Espera-se que o artigo 787 do Código Civil se preste a auxiliar uma mudança de visão ao dizer que "o segurador garante o pagamento de perdas e danos devidos pelo segurado a terceiro".

Após a Segunda Guerra Mundial, foi desenvolvida nos países anglo-saxônicos uma nova modalidade de seguro de responsabilidade civil, conhecida como "directors and officers" - a chamado D&O. Trata-se de um seguro voltado para os atos lesivos de responsabilidade dos diretores e administradores de sociedades.

Com o passar do tempo e graças a peculiaridades próprias do Estados Unidos e da Inglaterra, onde o custo de defesa é o que mais assusta, tornou-se comum a prática de postergar a garantia para as vítimas, com ou sem a inserção, nas apólices, de uma cláusula que prevê a possibilidade de se esgotar a importância segurada com o pagamento dos honorários advocatícios e o custeio de defesa do segurado.

Graças à hegemonia dos seguradores americanos na exploração do D&O, esta moda embarcou para os países mais diversos, não sem receber fortes críticas em alguns deles. E esta viagem também teve o Brasil como destino. Por aqui, hoje, são vendidas apólices desse seguro que admitem o consumo de toda a garantia exclusivamente com o pagamento dos honorários advocatícios e demais custos da defesa dos administradores. O risco de não sobrar nada para ser atribuído às vítimas parece pouco importante, embora a lei não admita isso. Em síntese, ao invés de vir ao encontro do interesse saudável de proteger as vítimas, o instrumento criado para isso acaba servindo justamente para armar o responsável.

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E tão forte passa a ser, neste campo, a ineficácia social da regra do artigo 787 do Código Civil que muitos acabam por assumir despercebidamente que o D&O é mesmo um seguro para os responsáveis contra as vítimas. O próprio Conselho de Gestão da Previdência Complementar, ao expedir a Resolução nº 13, de 2004, parece ter admitido que o seguro D&O não vem a favor dos prejudicados. O artigo 22 da resolução estabelece que "é vedada a contratação de seguro para cobertura de responsabilidade civil, penal ou administrativa de dirigentes, ex-dirigentes, empregados ou ex-empregados da entidade fechada de previdência complementar, seja por contratação direta ou por meio da patrocinadora, cujo prêmio implique qualquer ônus financeiro, direto ou indireto, para a entidade fechada de previdência complementar ou para os planos de benefícios por ela operados".

Verifica-se que o órgão regulador, preocupado em assegurar que os recursos aportados para os planos de benefícios não sejam utilizados para resguardar os interesses do administrador da entidade, ignorou a mais importante função do seguro, que é a de garantir o pagamento de indenização aos próprios participantes.

O parágrafo único do mesmo artigo da Resolução nº 13, contraditoriamente, dispõe que "o conselho deliberativo poderá assegurar, inclusive por meio da contratação de seguro, o custeio da defesa de dirigentes, ex-dirigentes, empregados e ex-empregados da entidade fechada de previdência complementar em processos administrativos e judiciais, decorrentes de ato regular de gestão".

Ao vedar a contratação do seguro de responsabilidade civil, cuidando de evitar que um pequeno ônus financeiro recaísse sobre a entidade ou os planos de benefícios, o Conselho de Gestão da Previdência Complementar restringiu a proteção com a qual seriam beneficiados os próprios participantes. Surpreendentemente, no parágrafo único da resolução, permite a utilização de recursos da entidade e dos planos para a contratação de seguro para a defesa dos administradores.

Por que vedar que tais recursos sejam utilizados para a própria segurança dos participantes e assistidos? E que seguro seria então o possível? Um D&O que não obedece a lei, reservado para proteger os interesses dos administradores sem garantir o crédito dos prejudicados? Ou um seguro de assistência jurídica?

No dia-a-dia, o que se tem visto é um D&O americanizado, que não se submete à ordem jurídica brasileira. Permitir a contratação de um seguro de D&O para administradores de entidades fechadas de previdência complementar não equivale a atenuar os incômodos que lhes causam as reclamações das vítimas de danos, mas a garantir a reparação dos prejuízos sofridos por essas vítimas. Todos sabemos que o patrimônio do administrador responsável será insuficiente para permitir a indenização do lesado. Daí a relevância do seguro.

O que se verifica é o abuso do modo como é operado o D&O. Ao invés de ser combatido para que flua plenamente a eficácia do artigo 787 do Código Civil, leva ao vício de se considerar o seguro de responsabilidade como qualquer coisa, menos um instrumento de proteção do lesado. E esse vício acaba por fazer com que degenere o próprio seguro.

Ivy Cassa é advogada especialista em previdência privada e seguros do escritório Ernesto Tzirulnik Advocacia e foi membro da comissão jurídica da Federação Nacional das Empresas de Seguros Privados e de Capitalização (Fenaseg) e secretária da Associação Nacional da Previdência Privada (Anapp)

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