Título: Essa estranha economia mundial
Autor: Wolf, Martin
Fonte: Valor Econômico, 13/06/2007, Opinião, p. A13

Crescimento acelerado, gigantescos "desequilíbrios" em conta corrente, baixas taxas de juros e de margens de risco, inflação contida e fácil acesso a financiamento caracterizam a economia mundial. Será que a festa está prestes a acabar? Provavelmente não. Mas, para identificar riscos, precisamos decidir o que impulsiona a estranha economia mundial que vemos ao nosso redor.

As duas explicações alternativas interessantes são o "excesso de economias" e o "excesso de dinheiro". Ambas compartilham temas comuns: globalização, a revolução nas finanças, a ascensão da China, baixa inflação e a estabilidade macroeconômica. Mas para além disso elas divergem. Em particular, invertem o papel de vilão e vítima: na história do excesso de economias, os parcimoniosos são os vilões e os devassos, as vítimas; na história do excesso de dinheiro, ocorre o inverso. Essa é a versão contemporânea da velha discussão entre keynesianos e monetaristas.

A hipótese do "excesso de economias" está associada a Ben Bernanke, hoje presidente do Federal Reserve, o banco central dos EUA. Mas a idéia foi lançada antes por outros. Brian Reading, da Lombard Street Research, estabelece a linha de argumento em nota recente [Monthly Review 216, June 2007, www.lombardstreetresearch.com (apenas assinantes)]. Surgiu um substancial excesso de economias em relação a investimentos, ele diz, predominantemente na China e no Japão e nos países exportadores de petróleo. Isso levou a baixas taxas de juros reais globais e a enormes fluxos de capital migrando na direção dos tomadores de empréstimo com maior capacidade financeira para obter crédito e maior disposição do mundo, as famílias dos EUA. O efeito de curto prazo é a valorização das taxas de câmbio reais e forte aceleração dos déficits em conta corrente nos países de destino. Para sustentar a produção em harmonia com o potencial, a demanda interna naqueles países também precisa ser muito superior ao PIB. O país precisa escolher políticas fiscais e monetárias que produzam esse resultado.

Os EUA não só absorveram 70% do saldo de capital excedente do mundo, como o consumo foi responsável por 91% do aumento no PIB nesta década. Assim, o excesso de economias numa parte do mundo levou a um excesso de consumo na outra.

O que Reading chama de "liqüidez tsunami" é resultado do excesso de economias. Baixas taxas de juro nominais e reais estimulam vigoroso crescimento do crédito, o deslocamento mundial para ativos de risco e a compressão das margens de risco. Fundos de derivativos e de participação acionária se expandem velozmente num momento em que os investidores buscam retornos elevados, ainda que os preços aquecidos dos ativos e as baixas taxas de juro reais prescrevam o oposto.

No mundo de abundância de economias, os governos são responsáveis por grande parte das saídas de capital. Isso acontece porque residentes internos não têm permissão para deter ativos estrangeiros (como na China) ou pelo fato de a maioria das receitas de exportação ser provisionada para governos (exportadores de petróleo). De qualquer forma, os governos acabam mantendo vastos ativos em moeda estrangeira como contrapartida para economias excedentes internas.

Neste mundo, os EUA são uma vítima passiva, os poupadores em excesso são os vilões e o Federal Reserve é o herói. No mundo da superabundância de dinheiro, porém, os poupadores do mundo são vítimas passivas, os americanos pródigos são vilões e o Federal Reserve é um anti-herói. Neste mundo, o banco central dos EUA é um estourador de bolhas em série, distorceu mercados de ativos e impôs emissão monetária em excesso sobre os parceiros comerciais ao redor do mundo - acima de tudo, sobre os que buscam a estabilidade monetária atrelada ao câmbio.

Esta é a linha de argumento de Richard Duncan, um conhecido analista financeiro (The Dollar Crisis: Causes, Consequences, Cures, John Wiley & Sons, 2003). O raciocínio é que o excedente monetário dos EUA causa baixas taxas de juro nominais e, considerando-se as moderadas expectativas inflacionárias, baixas taxas de juro reais. Isso causa um veloz crescimento no crédito aos consumidores e um colapso nas economias das famílias. O gasto excedente flui através das fronteiras, gerando um enorme déficit na balança comercial e uma correspondente saída de dólares.

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A saída enfraquece o dólar. Câmbios flutuantes são forçados a atingir níveis não-competitivos. Mas moedas atreladas são mantidas a cotações baixas por intervenções cambiais sem restrições. Isso acarreta gigantesco acúmulo de reservas cambiais (até US$ 3,445 trilhões entre janeiro de 2000 e março deste ano). Também cria dificuldades com a esterilização do impacto sobre a base monetária e a inflação.

Nesta visão da economia mundial, as poupanças não são uma força motriz, como na hipótese do excesso de economias, mas um resultado passivo da excessiva geração de moeda por parte da potência hegemônica do sistema. Os lucros (e, da mesma forma, as economias corporativas medidas) aumentam apenas devido ao aumento nas exportações e na produção sob economias de escala. Governos de países que possuem vastos superávits nas balanças comerciais passam a seguir as políticas monetárias e fiscais que sustentam as economias excedentes necessárias para refrear a demanda e a inflação excessivas.

Não surpreende que o Federal Reserve seja um adepto da hipótese do excesso de economias. Mas grande parte dos países asiáticos responsabiliza pelos seus apuros atuais a "hegemonia do dólar", que são o cerne da hipótese do "excesso de dinheiro". As grandes questões, contudo, são qual delas é a correta e se isso importa.

Minha resposta à primeira é que a hipótese do excesso de economias é mais correta, por vários motivos. Primeiro, o crescimento monetário nos EUA não é muito elevado. Segundo, as expectativas inflacionárias nos EUA mantém-se contidas no momento em que as taxas de juro começaram a crescer. Terceiro, a fragilidade do dólar dos EUA parece modesta, embora isto seja distorcido pelas intervenções. Quarto, é difícil acreditar que o crescimento acelerado das poupanças na Ásia e os exportadores de petróleo sejam reações passivas ao excesso de demanda de fora, em vez de escolhas deliberadas. Por fim, as próprias taxas atreladas são escolhas políticas.

Minha resposta à segunda questão é que isso de fato importa. Se vivemos num mundo com excesso de economias, o déficit em conta corrente dos EUA está protegendo o mundo de uma recessão mais profunda. Se vivemos num mundo de excesso de moeda, este mesmo déficit está ameaçando o mundo com um colapso do dólar e, em última análise, até com um retorno da inflação mundial.

A noção do excesso de economias é muito mais animadora. Poupadores em excesso aprenderão a gastar, no fim - antes cedo do que tarde, se os gastos dos EUA enfraquecerem muito. Mas se vivemos no mundo do excesso de dinheiro, os grandes ganhos na estabilidade monetária do quarto de século passado correrão risco.

De qualquer forma, o mundo atual não pode continuar indefinidamente. Além disso, seja como for, não faz muito sentido que as economias emergentes preencham um cheque em branco para os EUA. A era de intervenção monetária maciça e de dependência nos gastos excessivos das famílias dos EUA precisará terminar. Estará este fim próximo?