Título: A delicada tensão entre os índios e as empresas
Autor: Balarin, Raquel
Fonte: Valor Econômico, 05/06/2007, Especial, p. A22

Nos dois últimos anos, a Companhia Vale do Rio Doce (CVRD) deixou de embarcar 1,72 milhão de toneladas de minério de ferro por conta de invasões de grupos indígenas do Pará, Maranhão e de Minas. O impacto no resultado foi de US$ 26,46 milhões e na receita, de US$ 62,4 milhões. No Espírito Santo, uma manifestação de tupiniquins e guaranis provocou prejuízo à Aracruz de R$ 2,5 milhões em setembro de 2006, quando 200 mil árvores foram queimadas.

Os episódios são a face mais visível do crescimento da tensão entre as comunidades indígenas e as empresas. Esse tipo de manifestação não está mais restrita à construção de estradas ou hidrelétricas. Agora, atinge também o processo produtivo das companhias. No caso da Vale, a mineração. No da Aracruz, eucaliptos que serão transformados em celulose.

Entre o empresariado, nos bastidores, toma corpo a associação dos atos indígenas à pressão de concorrentes. Como a maior parte das Organizações Não-Governamentais (ONGs) que apóiam esses movimentos não abrem suas fontes de recursos, seria possível que competidores no mercado externo estivessem ajudando a patrocinar a causa. Carlos Alberto Roxo, diretor de sustentabilidade da Aracruz, tem interpretação diferente. "Há uma oposição ao agronegócio brasileiro, uma tentativa de barrar seu crescimento. O índio é só um personagem. Há também os quilombolas e os sem-terra", afirma.

Se há ou não "forças ocultas" contra as grandes empresas brasileiras, é algo a ser investigado. Mas o fato é que as empresas têm tido dificuldades de entender o processo de transformação pelo qual os índios brasileiros passam. É comum executivos dizerem, perplexos, que índios já usam celular ou dirigem carros, que estão "aculturados" ou que não são mais índios.

"É um absurdo as empresas dizerem isso. Já fui a aldeias em que à noite o índio assiste a novela da Globo e no dia seguinte está andando nu", diz Mércio Pereira, ex-presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai). Na aldeia dos xikrin, no Pará, apesar das casas, da luz elétrica, dos carros e das tevês, os índios se pintam para a festa, falam a língua nativa (muitos não sabem o português) e não abrem mão de um belo assado de jabuti.

Por outro lado, os índios foram apresentados a um mundo consumista e incorporaram a idéia de que as relações são mediadas por trocas. Crêem que as empresas lhes devem compensações e, quando as conseguem, acabam por se acomodar. Tornam-se dependentes.

Outra questão que contribui para a tensão entre as comunidades e as empresas é o aumento da população indígena. Em 1978, eram 180 mil índios. A partir da década de 80, o número começou a crescer. Hoje, são 500 mil (700 mil segundo a ONG Instituto Socioambiental). Nas comunidades assistidas pelas empresas, o aumento populacional é ainda maior, por conta da melhoria das condições de saúde e da maior oferta de medicamentos. Quanto mais gente, maior é a demanda por recursos.

Além disso, assim como a população brasileira sofre com os poucos investimentos em setores como saúde, educação e infra-estrutura, os índios também se ressentem da falta de recursos do governo. A Funai tem orçamento anual de R$ 97 milhões para os indígenas, a maior parte vivendo em regiões remotas e em lugares tão distantes entre si como o interior da Amazônia e a região de Passo Fundo, no Rio Grande do Sul. Hoje, cerca de 13% do território brasileiro está demarcado como área indígena ou em vias de ser demarcado. Só a Vale gasta por R$ 19 milhões por ano com as comunidades - quase 20% do orçamento da Funai.

Os índios descobriram que invadir empresas e mexer com o bolso delas chama a atenção. "Fomos forçados a fazer isso para pressionar o governo. Enquanto a gente fica de braço cruzado, ninguém se manifesta. Tem que mexer na parte econômica", afirma Paulo Henrique Vicente Oliveira, da aldeia de Caieiras Velha (ES), coordenador da comissão de caciques da Associação Indígena Tupinikim e Guarani. Os índios daquela região pressionam o governo para que seja demarcada área de 11 mil hectares - a terceira ampliação desde a criação da reserva, em 1983.

A Aracruz, que é proprietária da área e tem ali florestas plantadas, repassou aos índios (via acordo comercial, ação voluntária e convênio) R$ 23 milhões de 1998 a 2005. As comunidades tornaram-se dependentes desse recurso.

O mesmo ocorre com os xikrin, povo indígena que vive no Pará e que no fim do ano passado invadiu Carajás. Ao longo dos anos, com recursos da Vale, foram construídas na aldeia casas de alvenaria com água encanada, poço artesiano, e foi instalado motor movido a óleo diesel. Tudo isso, hoje, precisa de dinheiro para ser mantido.

Depois da invasão, a Vale suspendeu os repasses aos índios que, via Funai e Ministério Público, foram à Justiça. Uma liminar restabeleceu os pagamentos, mas os recursos passaram a ser depositados em juízo. O dinheiro só é liberado mensalmente pelo juiz federal Carlos Henrique Borlido Haddad, de Marabá, após uma análise dos gastos. O juiz deu prazo até julho para que xikrins, Vale, Funai e Ministério Público cheguem a uma solução negociada. "De outra forma, eu resolveria o processo, mas não o problema", diz Haddad.

A proposta da Vale aos xikrin segue uma nova diretriz da empresa para as comunidades indígenas. Hoje, 50% dos recursos repassados a essas comunidades são usados para alimentação, remédios, educação e gastos administrativos e 15% para atividades produtivas, como piscicultura, apicultura, artesanato e agropecuária. "Queremos mudar essa distribuição. Vamos reduzir os projetos de assistencialismo, como saúde e educação, que são papel do Estado. E aumentar os projetos estruturantes", diz Walter Cover, diretor de projetos institucionais estratégicos da Vale. Segundo ele, outro objetivo é fechar acordos de longo prazo, evitando as tensões anuais.

A Funai tem incentivado esse tipo de convênio de auto-sustentação com base nos resultados do Programa de Compensação Ambiental Xerente (Procambix), acordo firmado entre os xerentes do Tocantins e a Investco por conta da hidrelétrica Luiz Eduardo Magalhães. O convênio de dez anos, lançado em 2002, previa investimentos de R$ 10 milhões. Foram criadas roças mecanizadas e os índios foram treinados a criar peixes e galinhas caipiras. Saúde e educação foram assumidos pelo governo.

O problema de projetos como esse é que nem sempre os recursos são aplicados como as empresas ou os "brancos" imaginam. Numa área florestal, eles cortam mais madeira do que se poderia cortar, para distribuir os recursos entre as famílias e "contentar a todos". A pressão da comunidade sobre as lideranças é muito grande e, na maior parte dos casos, a coletividade ainda se sobrepõe à individualidade. Além disso, nesses projetos produtivos, os índios têm de "aprender" com os brancos as técnicas de produção e cultivo.

"Temos de parar de olhar para o índio com os olhos do branco. As etnias sempre foram coletoras e não produtoras. Isso não muda por decreto", diz, um tanto resignado, Francisco de Oliveira Ramos, gerente da Associação Indígena Kákárekré, dos xikrin, no Pará.

A segunda reportagem da série "Economia na selva", sobre os xikrin, será publicada amanhã.