Título: Pepsi repara estragos à sua imagem na Índia
Autor: Brady, Diane
Fonte: Valor Econômico, 05/06/2007, Empresas, p. B4

Indra K. Nooyi diz que ainda se sente culpada toda vez que enche uma banheira de água. Isso parece difícil de acreditar vindo da principal executiva de uma grande multinacional, até que você leve em consideração sua vida anterior. Nooyi, diretora-presidente da PepsiCo, nunca teve muita água quando era pequena, na década de 60, e vivia em Chennai, uma cidade costeira da Índia. Embora ela descreva sua família como "bem classe média", eles ainda precisavam acordar todos os dias entre as três e as cinco da madrugada - as únicas horas em que as válvulas da companhia distribuidora de água do município estavam abertas - e encher todos os baldes disponíveis na casa. Dois baldes eram separados para cozinhar, e a irmã mais velha e o irmão mais novo de Nooyi recebiam dois baldes cada. Nooyi diz que, na verdade, "era preciso pensar muito antes de resolver tomar um banho". "Aprendemos a viver nossa vida com aqueles dois baldes."

Nooyi deixou Chennai, atraída pelo sonho de fazer carreira nos Estados Unidos. Ela entrou no renomado Instituto Indiano de Administração e posteriormente na Yale University, antes de entrar na esfera corporativa e eventualmente indo parar na PepsiCo, em 1994. Quando ela foi nomeada diretora-presidente, em outubro, a água da Índia voltou a ser importante em sua vida.

Dessa vez, Nooyi foi parte do problema. Aldeões começaram a acusar a PepsiCo - que escolheu a Índia como uma de suas maiores prioridades - de consumir água em excesso dos lençóis subterrâneos de suas comunidades ressequidas. Pior ainda foi a alegação insistente de que a companhia fabricante de bebidas e salgadinhos, junto com a rival Coca-Cola, estava deixando que resíduos de pesticidas infiltrados nos lençóis subterrâneos contaminassem os refrigerantes produzidos no país. As acusações, feitas pela primeira vez em 2003, surgiram novamente dois meses antes de Nooyi assumir o comando do grupo.

As vendas de refrigerantes da Pepsi, que caíram dois dígitos na Índia quando o escândalo veio à tona, sofreram mais um golpe no quarto trimestre de 2006. Ela se preparou, enquanto a população destruía garrafas do refrigerante nas ruas e vários Estados indianos baniam, ou restringiam, as vendas. Nooyi, hoje com 51 anos, estava lívida. "É loucura alguém pensar que a Pepsi colocaria em risco sua marca - uma marca global - ,fazendo algo tão estúpido em qualquer país."

Mas os políticos e os consumidores indianos levaram as acusações a sério, em parte porque elas vieram de Sunita Narain. Uma conhecida ativista de Nova Déli, Narain, 45, nasceu em uma família de defensores da liberdade que apoiou Mahatma Gandhi na campanha pela independência da Índia em 1947. Ela idolatrava seu falecido pai, muito embora ele nem sempre apoiasse a crença de Gandhi na não-violência. "Me disseram que ele chegou até a fabricar bombas", diz ela.

No ensino médio, Narain adotou causas ambientais, fazendo campanhas contra as incorporadoras imobiliárias que derrubavam árvores em Nova Delhi. Ao contrário de Nooyi, sua ambição era não deixar a Índia, e sim salvá-la dos excessos da industrialização. Ela não cursou faculdade, explicando que "tinha muita vontade de fazer algum curso sobre o meio ambiente, mas ninguém oferecia isso". Então, em 1981, ela se envolveu com um carismático ativista chamado Anil Agarwal, que havia iniciado o Centro para a Ciência & Ambiente (Centre for Science & Environment, CSE). Narain se tornou diretora do incipiente grupo em 2002, quando Agarwal morreu. O tom que ela adota é alarmista, do tipo "o fim está próximo"; suas táticas sempre atraem atenção da imprensa e lhe renderam prêmios de defesa do meio ambiente como o Stockholm Water Prize de 2005. Os indianos, diz ela, estão "sendo envenenados por pesticidas" e testes da CSE mostram que a Pepsi contribuiu para essa agressão tóxica.

Até certo ponto a história de dois indivíduos determinados, a atual batalha da Pepsi sobre a água na Índia ilustra a escalada de uma reação mundial às maneiras como as multinacionais consomem os recursos naturais. Companhias estrangeiras há muito tempo transformam petróleo, diamantes e incontáveis matérias-primas em lucros que saem das nações em desenvolvimento para os países ricos. Agora, o campo de batalha está ficando equilibrado.

Ativistas como Narain possuem blogs, e-mail e outras ferramentas baratas e poderosas para transmitirem suas mensagens. Enquanto isso, os consumidores estão mais atentos à maneira como as grandes empresas fazem negócios no mercado internacional e podem reagir boicotando os frutos do mau comportamento, dos diamantes de sangue aos calçados que empregam mão-de-obra semi-escrava.

Mesmo com as empresas começando a levar a sério o mantra da responsabilidade social, elas se encontram mais vulneráveis a ataques políticos. Meses atrás, a Royal Dutch Shell cortou sua produção de petróleo na Nigéria em meio a violentos ataques às suas operações. A De Beers, a gigante dos diamantes, vem se defendendo de alegações de que participou do remanejamento de nativos em Botsuana contra a vontade destes, e a Cargill foi forçada a fechar temporariamente sua unidade de processamento e embarque de soja no Brasil, em meio à grita da opinião pública de que estaria contribuindo para a destruição da Amazônia.

A hostilidade com a Pepsi na Índia vem sendo exacerbada pelo significado particular que a água tem para os indianos. Tomar banho pode ser um ato sagrado. Para muitos, a morte não é caracterizada até que as cinzas sejam jogadas no rio Ganges. Numa pesquisa mundial feita no ano passado pelo Henley World , grupo de pesquisas junto ao consumidor, os indianos listaram beber água como uma das principais coisas que eles fazem para melhorar o seu bem-estar. Os americanos mencionaram a ingestão de suplementos; os alemães citaram o banho de sol.

Ainda assim, a água indiana é uma das piores do mundo, segundo a Organização das Nações Unidades (ONU), devido ao baixo índice de tratamento, ao uso maciço de pesticidas e à poluição industrial. A disponibilidade é dificultada pelo bombeamento em excesso e a gestão ruim. Os municípios recebem uma ninharia dos consumidores individuais, que não cobre o custo da distribuição da água, enquanto grandes fazendas e indústria têm água praticamente de graça, criando poucos incentivos à economia. Nesse cenário, uma companhia estrangeira que desvia a água escassa para a fabricação de um refrigerante açucarado é um grande alvo de críticas.

Nooyi reconhece o quanto é delicado estar associada tão de perto à água em seu país natal. Mas ela observa que os refrigerantes e a água engarrafada respondem por menos de 0,04% do uso industrial da água na Índia. "Se nos notam, não é por causa da água que usamos. É pelo que representamos", diz ela, bebendo um gole da Aquafina da Pepsi durante entrevista em sua iluminada e organizada sala na sede da companhia em Purchase, Nova York. Ela diz que a Pepsi, uma corporação avaliada em US$ 35 bilhões, chegou ao ponto de cavar poços em vilas indianas e até mesmo a ensinar às populações locais técnicas melhores de cultivo de arroz e tomate. Ela está bastante ciente da importância das percepções locais. "Não queremos que as pessoas pensem que o setor está tirando do solo recursos naturais dados por Deus e exaurindo as comunidades de seu sustento ou meios de subsistência."

O problema da Pepsi com a água na Índia deu uma reviravolta dramática depois que Abhiram Seth, um executivo da companhia, visitou Narain em fevereiro de 2003. Seth, um homem de 55 anos, falante e irônico, e que também faz teatro amador, atua como o principal navegador da Pepsi pelos complexos canais políticos e reguladores de seu país. Como diretor de exportações e assuntos externos, ele também administra os ecléticos projetos agrícolas que poderão ajudar a melhorar a imagem da companhia. Seth chegou ao escritório cheio de plantas de Narain em Nova Delhi, logo depois que a CSE havia testado as 10 principais marcas de água engarrafa vendidas no país, em busca de pesticidas, e pressionava o governo por uma regulamentação mais rígida.

A questão ficou delicada depois que estudos do governo constataram recentemente altos níveis de pesticidas no leite, arroz e outros produtos, despertando preocupações com as toxinas que estão se infiltrando nas reservas de água. Os indianos dependem dos lençóis para obter a água potável que consomem e utilizam na agricultura, tendo já perfurado 21 milhões de poços, a maioria irregulares, desde 1965. Seth explica que foi até Narain "para entender os dados e ver se podemos trabalhar juntos para resolver os problemas".

-------------------------------------------------------------------------------- Ativistas como Narain, cuja família apoiou Gandhi, possuem blogs e outras ferramentas baratas para protestar --------------------------------------------------------------------------------

Narain lembra de uma maneira diferente. Ela afirma que Seth a importunou e "fez um grande discurso sobre nacionalismo ou alguma porcaria do gênero...Ele estava claramente tentando me fazer desistir". Com a Aquafina perto do topo do ranking das melhores águas engarrafadas do país, ela se perguntou se não haveria algo mais por trás. Narain suspeitava que a Pepsi não queria padrões mais rígidos para a água porque isso exigiria um tratamento mais rigoroso da água que entra na fabricação dos refrigerantes. Naturalmente suspeita do comportamento corporativista, ela pensou: "Por que não damos uma investigada nos refrigerantes deles?"

Nos seis meses seguintes, Narain estava com cientistas da CSE testando aleatoriamente amostras de 12 grandes marcas de refrigerantes, da Diet Pepsi e a Coca-Cola, a favoritos locais como a Mirinda e o Thums Up. "Antes de fazermos isso", insiste ela, "eu não tinha idéia de que todos eles eram propriedade da Pepsi ou da Coca-Cola." Mesmo assim, com um orçamento anual que na época era inferior a US$ 1 milhão (ele aumentou para US$ 1,2 milhão no ano passado), Narain sabia muito bem o quanto era importante bater nos grandes vilões para promover sua causa. "Olhar para os refrigerantes chamou atenção para todo o problema dos pesticidas", diz ela. O que a CSE encontrou foi traços residuais de pesticidas como o lindane, DDT, malathion e chlorpyrifos.

Embora muito menores que os encontrados pela CSE no leite, os níveis de resíduos excederam os rígidos padrões da Comissão Econômica Européia para a água. Nos testes da CSE, os da Pepsi estavam 36 vezes acima dos padrões aceitos, enquanto os da Coca-Cola estavam 30 vezes maiores. Em 5 de agosto de 2003, Narain deu uma entrevista coletiva à imprensa em Nova Delhi e disse que os refrigerantes fabricados na Índia eram "impróprios para o consumo humano", e que poderiam causar câncer e defeitos de nascimento no longo prazo. Ela disse que, num insulto ainda maior aos consumidores indianos, amostras testadas de refrigerantes produzidos nos Estados Unidos não apresentaram esses resíduos, o que levou Narain a acusar a Pepsi e a Coca-Cola de empurrar produtos "que eles não ousariam vender" em casa.

Os executivos da Pepsi ficaram surpresos e ultrajados. "Quando você faz um teste em subpartes por bilhão", diz Seth, "é como medir um segundo em 320 anos." A equipe da Pepsi na Índia imediatamente entrou em contato com Nooyi, então presidente e diretora financeira, e Michael White, diretor-presidente da PepsiCo International. "Nós levamos aquilo muito a sério", diz White, "mas também sabíamos que nossos produtos eram totalmente seguros." A Pepsi concedeu uma rara entrevista coletiva à imprensa junto com a Coca-Cola, em Nova Delhi, oferecendo dados que contradiziam os da CSE e alegando que a companhia seguia na Índia os mesmos padrões rígidos de todas as partes do mundo.

Até mesmo Narain não discutiu com os argumentos das companhias americanas de que o nível de pesticidas nos refrigerantes estava muito menor que os colocados pelos indianos na maioria dos outros alimentos. Mas ela argumentou que os alimentos são nutritivos, enquanto que os refrigerantes gaseificados não. As multinacionais são "grandes usuários de água... nós queríamos chamar a atenção para o impacto que elas provocam", diz Narain. Ela conseguiu o que queria. Manifestantes em Mumbai e Kolkata destruíram anúncios da Pepsi e da Coca-Cola e queimaram cartazes imitando garrafas de refrigerantes. Vários Estados indianos restringiram ou baniram a venda de refrigerantes. Bombardeados com alertas por e-mail da CSE, jornalistas e bloggers de todas as partes do mundo entraram na história

Nooyi diz que a sensibilidade dos indianos em relação à qualidade da água e as companhias estrangeiras, fez da Pepsi um alvo convidativo. Mas ela admite que a estratégia de marketing da companhia piorou as coisas. Ao invés de promover os esforços da companhia para melhorar a água e sua produção, a Pepsi veiculou anúncios com celebridades indianas. Ela pintou versões enormes de sua logomarca vermelha, branca e azul em pedras antigas do Himalaia e prédios do país todo.

Ligar a Pepsi aos pesticidas foi suficiente para afugentar até mesmo os consumidores mais sofisticados como Manish Sinha, executivo do setor de propaganda. Ele bebia refrigerantes à base de cola quase todos os dias e havia até mesmo trabalhado em promoções da Pepsi na agência de propaganda JWT poucos anos antes. "Eu tinha uma posição muito passiva sobre a questão", diz Sinha, hoje com 36 anos e vice-presidente da Bates David Enterprise, uma agência de propaganda de Mumbai. Mas o estudo da CSE o assustou. "Num nível subliminar, eu preferi a segurança", diz Sinha, que filtra a água que sua família bebe e a ferve para eliminar patologias. Ele tem suas próprias lembranças da falta de água do passado, vivendo da venda de recipientes de água de 25 litros e assistindo as pessoas juntar dinheiro para comprar seus suprimentos diários de água dos caminhões-pipa. Ele repete a afirmação de Nooyi de que há uma tendência a culpar as multinacionais, mas ele acredita que os fabricantes de refrigerantes não estão fazendo o suficiente para reduzir os problemas de água da Índia. "Não confio mais nas companhias de refrigerantes."

O drama que se desenrolou depois do primeiro relatório de Narain sobre os refrigerantes não foi suficiente para apaziguá-la. O governo indiano não se decidia entre desclassificar as constatações da CSE ou apoiar o pedido do grupo por padrões mais rígidos para as bebidas gaseificadas. Narain diz que justo quando os padrões estavam para ser ratificados, em uma reunião realizada em março do ano passado, um executivo de uma fabricante de refrigerantes - que ela não se lembra qual - apareceu com uma carta do ministro da Saúde. Nela, o ministro dizia que os novos padrões deveriam ser adiados porque novas pesquisas estavam sendo realizadas.

Narain ficou furiosa com o que classificou publicamente de briga pelo poder corporativa. "Está claro que a carta foi escrita para as fabricantes de refrigerantes", diz ela. "Elas conseguiram fazer o governo matar a padronização." Executivos da Pepsi classificam a afirmação de ridícula. Narain respondeu com sua munição mais eficiente. O Estado de Kerala, ao sul da Índia, proibiu a produção e venda de todos os produtos da Coca-Cola e da Pepsi, enquanto outros estados proibiram a venda de refrigerantes nas escolas e hospitais. Os protestos aumentaram novamente.

As vendas caíram, enquanto a campanha movida por Narain mais uma vez batia na atitude conflituosa dos consumidores indianos em relação às poderosas marcas estrangeiras - especialmente aquelas vistas como empresas que lucram às custas da população.

Até mesmo os beneficiários da generosidade da Pepsi se mostram ambivalentes. Na pequena vila de Chullimada, no Estado de Kerala, a Pepsi recentemente bancou a construção de um poço artesiano que proporciona água para cerca de 50 residências. Foi do vilarejo, onde muitos moradores ganham a vida fazendo pequenos bicos, que partiu uma marcha contra a Pepsi, em outubro, que se dirigiu para uma fábrica da companhia em Palakkad, que fica nos arredores. Como resultado das melhorias feitas pela Pepsi, as residências do lugar agora possuem acesso a água potável, enquanto antes os moradores precisavam caminhar até três horas por dia para conseguir água.

Mas boas ações podem estimular novas demandas. Quando administradores da Pepsi visitaram recentemente o vilarejo, foram recebidos com flores por cerca de uma dezena de mulheres. Uma delas se queixou que a prefeitura local não paga a energia elétrica adicional necessária para bombear a água. Como resultado, as bombas funcionam apenas uma vez por dia, forçando os moradores a acumular água. A moradora sugeriu que a Pepsi poderia cobrir os custos extras. Annie Kishen, diretora de comunicações corporativas da PepsiCo para a Índia e ela mesma natural de Kerala, sorriu e disse palavras simpáticas. Após a visita, ela confessou que a companhia não tem interesse em pagar as contas de luz dos moradores.

Depois da nova explosão de Narain contra a concentração de pesticidas, em agosto, a Pepsi resolveu ignorá-la e partir direto para a mídia indiana. A companhia se reuniu com conselhos editoriais de publicações, apresentou seus próprios números em entrevistas à imprensa e veiculou comerciais de TV apresentando seu então presidente na Índia, Rajeev Bakshi. A companhia também acelerou os esforços para reduzir o uso de água em suas fábricas

Olhando para trás, Nooyi afirma ter parte da culpa por ter deixado as coisas saírem de controle. "Uma coisa que eu deveria ter feito era aparecer na Índia três anos atrás e dizer: 'Parem com isso. Esses produtos são os mais seguros do mundo. E seus testes estão errados'." Mesmo assim, ela sabe que a PepsiCo terá que continuar fazendo mais do que simplesmente ser parcimoniosa no uso da água.