Título: É preciso construir o amanhã agora
Autor: Tiago, Ediane
Fonte: Valor Econômico, 15/06/2007, EU & Fim de Semana, p. 6

A economia brasileira vive desde 2006 - e mais claramente a partir do início de 2007 - uma nova dinâmica. Durante décadas, vivemos o que se convencionou chamar de vôo de galinha: baixo crescimento e crises recorrentes, derivadas do clássico ciclo de desvalorizações cambiais, disparadas da inflação, choques de juros e freqüentes períodos de recessão. Agora temos o que parece ser um momento mágico, que para os acostumados à realidade anterior parece quase sobrenatural, com reservas cambiais acima de US$ 140 bilhões, com a inflação constantemente abaixo da meta perseguida pelo Banco Central e os juros futuros negociados na BM&F ensaiando romper a barreira de um dígito.

Paralelamente, a atividade econômica tem acelerado, com comércio exterior vigoroso e forte crescimento da demanda interna. Os investimentos privados crescem ao ritmo superior a 10% ao ano e o mercado financeiro, após décadas de atrofia e frustrações, começa a dar sinais de um novo vigor. Em virtude disso, as projeções dos principais analistas, no Brasil e no exterior, mostram uma economia crescendo nos próximos anos a um ritmo próximo a 4,5% ao ano, taxa duas vezes maior do que a média da década anterior.

As perguntas que fazemos hoje são como essa nova dinâmica se desenvolveu e se os obstáculos para um crescimento mais acelerado e sustentado, apontados durante anos pelos analistas do mundo financeiro, continuam presentes em nossa economia.

Em relação à dinâmica da economia, hoje está claro que a raiz de nossos problemas era a fragilidade externa, que condicionava a política econômica como um todo e limitava o potencial de nosso crescimento. Este foi o grande paradoxo do período FHC: a fragilidade externa - agravada pelo erro de política cambial do primeiro mandato - impediu que os grandes avanços obtidos em termos de reformas e modernização institucional se traduzissem imediatamente em mais crescimento.

Apenas a partir de 2000, já com a implantação do arcabouço atual de política econômica - regime de metas de inflação, câmbio flutuante e algum rigor fiscal - é que o ambiente econômico começou a melhorar. Neste momento tem início um lento processo de redução da vulnerabilidade externa, mas que só viria a ganhar impulso decisivo a partir de 2003, por várias razões. No Brasil, era restaurada a confiança com a opção do presidente Lula pela manutenção da política econômica do governo anterior. No exterior, fenômenos de grande importância estavam em curso: o mundo começava a experimentar os efeitos defasados do maior choque expansionista (monetário e fiscal) do pós-guerra, implementado entre 2001 e 2002 nas economias desenvolvidas, e a China atingia massa crítica - após décadas de crescimento acelerado - para influenciar a dinâmica do comércio internacional, a atividade econômica mundial e as condições de inserção internacional de muitos mercados emergentes.

De fato, a China passou a demandar volumes crescentes de importações de commodities, provocando um choque favorável em nossos termos de troca e um crescimento vigoroso de nossas exportações. Sem que à época isto fosse percebido em sua integridade, o Brasil passava de um longo período de escassez de dólares para um processo acelerado de acúmulo de divisas. Em pouco tempo - mais claramente a partir de 2004/2005 - o real deixou de ser uma moeda frágil e se transformou em objeto de desejo: a sobra estrutural de dólares e os juros reais ainda muito altos contribuíram para uma contínua tendência de valorização, com baixa volatilidade. O Brasil caminha a passos largos para a posição de credor externo até o início de 2008, fato inimaginável há quatro anos.

Este primeiro choque externo positivo, e que continua até hoje, teve conseqüências muito favoráveis para a economia brasileira. A estabilidade cambial proporcionou aos agentes econômicos um horizonte longo de previsibilidade e abriu caminho para aumento das importações, complementando a oferta doméstica e reduzindo estruturalmente a inflação. O Brasil é hoje um país aberto, com sobra de divisas e está exposto aos efeitos da globalização - real e financeira - como nunca antes.

De fato, estamos hoje vivendo um segundo choque externo, desta vez de natureza financeira. Diante de uma economia com elevado grau de solvência externa, inflação sob controle e vista como uma das maiores beneficiárias do crescimento chinês (ao contrário de outros emergentes mais expostos à competição, como o México), os investidores internacionais passaram a investir volumes expressivos e crescentes no mercado de capitais brasileiro, antecipando a convergência para o chamado grau de investimento e, com ela, um novo universo de oportunidades de negócios. A entrada de capital externo quebrou o padrão oligopolista em nosso mercado monetário, permitindo - dado o cenário benigno de inflação - a queda expressiva da taxa real de juros, o aumento dos prazos dos títulos emitidos por empresas privadas e pelo Tesouro Nacional e o aparecimento de novas modalidades de financiamento no mercado de capitais. Este segundo choque externo está criando uma força nova, ao viabilizar projetos de investimento há muito tempo dormentes nas gavetas das empresas brasileiras. Os gráficos mostram a impressionante situação em que nos encontramos: juros nominais de longo prazo próximos a 10% ao ano, juros reais de 6% ao ano e inflação de longo prazo abaixo de 4% ao ano.

Isso nos leva a uma segunda pergunta: e os problemas estruturais sempre mencionados como impeditivos do crescimento? Afinal, esses obstáculos - riscos regulatórios e legais, carga tributária única no universo das economias em desenvolvimento, sistema tributário que agride a racionalidade de uma economia de mercado, infra-estrutura ultrapassada em função de anos de investimentos muito baixos, despesas públicas sempre crescentes, particularmente na previdência social, baixa qualidade da educação etc. - são hoje praticamente os mesmos do período de estagnação que vivemos durante mais de duas décadas.

O ajuste externo tornou claro que os fatores acima não eram impeditivos para o início de um processo de crescimento. O padrão de inserção internacional é que se mostrou determinante, a ponto de suplantar - pelo menos nos momentos iniciais - os outros fatores. Talvez o exemplo mais claro seja a taxa real de juros, que caiu rapidamente para patamares inéditos sem que nenhuma grande reforma institucional tenha sido aprovada no governo Lula. O processo descrito acima permitiu que o setor privado "descolasse" do governo, embarcando em um novo frenesi de investimentos, a despeito da paralisia e da ineficácia estatais. É aí que se encontra o grande risco.

Da mesma forma que o ímpeto reformista e modernizador do governo FHC deu frutos apenas anos depois, sob uma nova conjuntura externa, os custos da paralisia atual ainda podem permanecer adormecidos por algum tempo. A janela atual pode vir a ser apenas isso: uma janela. Se não for aproveitada para fazer avançar a conhecida e amplamente debatida agenda de reformas, os investimentos públicos em infra-estrutura (há um risco concreto de escassez de energia nos próximos anos), a modernização do Estado e a educação - elemento tão crucial para o sucesso no mundo moderno -, teremos utilizado mal a oportunidade. É também na hora da abundância que o futuro precisa ser construído.

Luiz Carlos Mendonça de Barros e Paulo Pereira Miguel são economistas da Quest Investimentos