Título: E agora, Dilma? Na saúde, a paciência acabou
Autor: verdini, Liana ; Freitas, Jorge
Fonte: Correio Braziliense, 29/12/2010, Brasil, p. 12

Brasileiros sofrem com o mau atendimento nos hospitais públicos e com o descaso dos planos privados. Governo e ANS pouco fazem para reverter o quadro. Imposto encarece remédios

Ao assumir a Presidência da República, a partir de 1º de janeiro, Dilma Rousseff receberá o comando de um país com a economia bem encaminhada, mas com gargalos quase intransponíveis em um dos setores mais sensíveis para a sociedade: a saúde. Com a população em idade produtiva ¿ de 15 a 64 anos ¿ crescendo nos próximos 20 anos, beneficiada pelo incremento na renda, Dilma terá que entregar ao brasileiros aquilo que nenhum outro governo foi capaz de ofertar ¿ atendimento de qualidade, tanto na área pública quanto na privada.

Além de arcarem com uma das maiores cargas tributárias do mundo e não terem em troca serviços à altura, os brasileiros pagam caro por planos de saúde sem ter a contrapartida adequada. Nesse caso, a farra das operadoras é endossada por um órgão regulador fraco e politizado, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Em vez de proteger os cidadãos, como manda a lei, a agência está sempre do lado das empresas.

Pior: aqueles que ainda conseguem comprar medicamentos arcam, em média, com 33,9% em tributos. Ou seja, de cada R$ 100 despendidos com remédios, muitos de uso contínuo, R$ 33,90 vão para os cofres da Receita Federal, dinheiro que, em boa parte, acaba escorrendo para o ralo. O absurdo se torna maior quando se compara a carga tributária incidente no Brasil sobre o setor farmacêutico com as de outros países. Nos Estados Unidos e na Argentina, todos os remédios são isentos de impostos. Na Suíça, a taxa é de apenas 3%.

Mas não é só. Diz o vice-presidente do Sindicato da Indústria de Produtos Farmacêuticos, Nelson Mussolini. ¿No Brasil, o ser humano paga mais impostos para se curar do que quando compra remédios para os animais. A carga média de tributos incidentes sobre produtos veterinários é de 15%, menos da metade da cobrada dos cidadãos¿. Tal distorção ganhará uma dimensão gigantesca nos próximos anos se for levado em conta que a população está em processo de envelhecimento e precisará cada vez mais de tratamento ¿ ou seja, internação, consultas, exames e medicamentos.

Pobre sofre O descaso é enorme. Os cidadãos obrigados a se sujeitarem à precariedade dos hospitais públicos são submetidos à falta de profissionais, de medicamentos, de máquinas e de equipamentos, fruto, muitas vezes, da péssima gestão de seus dirigentes. Exemplos de brasileiros indignados não faltam. ¿Pobre não tem atendimento. O que vemos nos hospitais públicos é uma pouca-vergonha¿, reclama Marta Maria Trindade, 49 anos. Com febre e pressão alta, ela chegou às 5h da manhã ao Hospital Regional de Ceilândia. O dia acabou e ela não foi atendida.

Histórias escabrosas na área de saúde não faltam no Distrito Federal, até bem pouco tempo apontado como modelo para o país. O aposentado José Márcio Garcia conta que, vitimado por um acidente vascular cerebral (AVC), recebeu a seguinte orientação de um enfermeiro do Hospital Regional de Taguatinga: ¿Deite rapidamente nesta maca antes que outro tome o seu lugar¿. Quase curado, Garcia não vê a hora de voltar para casa. ¿Hospital público é sinônimo de inferno¿, sentencia.

O que o aposentado e a maioria dos brasileiros enfrentam no dia a dia foi captado por uma pesquisa chancelada pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud). Quando considerados temas como saúde e educação, o Índice de Valores Humanos (IVH) do Brasil é de 0,59, em uma escala de zero a um ¿ quanto mais distante de um, pior a avaliação. Se for considerado apenas o tempo de espera para o atendimento médico-hospitalar, linguagem utilizada e interesse da equipe médica, o resultado é desalentador: 0,45.

Mais assustador é que, quanto menor for o nível de renda, pior é o IVH. Entre os que ganham até um salário mínimo, o índice fica em 0,39. Na camada dos que recebem entre 10 e 20 salários, o indicador crava 0,68. Ironicamente, foram os votos dos mais pobres que levaram Dilma Rousseff ao Palácio do Planalto.

Sem brincadeira Como os postos de saúde, hospitais e emergências públicos estão à beira do colapso, a população se vira como pode. O aposentado João Pereira Braga, 68 anos, pagou do próprio bolso os exames de sangue prescritos por sua médica em um hospital público. ¿Gastei o que não tinha¿, lamenta. A queixa é endossada pela viúva Cacilda Lima Ferreira, 45, dona de casa. Mas o alvo é o seu plano de saúde, com o qual tenta dar segurança aos dois filhos. ¿Pago caro pelo plano, mas tenho a maior dificuldade para ser atendida. Quando não consigo autorização, no sufoco, recorro a um hospital do governo¿, afirma. ¿Nessas horas, vejo que os serviços do hospital público e do convênio são a mesma coisa, ambos ruins¿, acrescenta.

Não à toa, cansados de serem maltratados, os brasileiros depositam na presidente eleita a esperança de uma solução satisfatória para a área de saúde. Pouco antes de sua eleição, Dilma reconheceu que a situação não é nada boa. ¿De fato, temos um problema de qualidade da saúde no Brasil. E se a gente não reconhecer que tem, não melhora. Eu assumo o compromisso de melhorar a saúde, fiscalizar a qualidade da prestação do serviço do Sistema Único de Saúde (SUS)¿, comprometeu-se. Os eleitores poderão ser complacentes nos primeiros meses do futuro governo. Mas a promessa não cumprida poderá custar caro em 2014, quando todos voltarão às urnas. Com saúde não se brinca.