Título: Uma proposta de regulação para a crise do transporte aéreo
Autor: Novais, Leandro
Fonte: Valor Econômico, 15/06/2007, Opinião, p. A12

A crise atual do transporte aéreo doméstico no Brasil é resultado de múltiplos fatores. Os que mais transparecem são os problemas de gerenciamento do tráfego aéreo e os gargalos da infra-estrutura, tendo em vista que os aeroportos centrais - em especial Congonhas e Guarulhos - são incapazes de absorver o aumento contínuo do fluxo de passageiros, no desenho atual da malha aérea brasileira. Nos últimos três anos o setor aéreo doméstico cresceu, em média, 15% ao ano. No entanto, um importante fator vem sendo pouco debatido: trata-se da escolha pública entre regular ou desregular o mercado.

O setor aéreo doméstico no Brasil apostou, corretamente, em um processo gradual de desregulação econômica. Iniciado no começo dos anos 1990, esse processo se pautou pela liberação de preços e pela entrada de novas companhias, atingindo seu ápice na guerra tarifária de 1998 e 1999. Apesar de alguns retrocessos entre os anos 2001 e 2003 (período de entrada da Gol no mercado) o mercado permanece claramente liberalizado.

A desregulamentação econômica do setor aéreo doméstico no Brasil revive com algumas semelhanças a norte-americana, iniciada em 1978. Ainda que o mercado americano tenha transportado no ano passado cerca de 700 milhões de passageiros - contra cerca de 45 milhões do brasileiro - ambos os países apresentam dimensões continentais e têm o setor aéreo como estratégico para sua economia.

A passagem do modelo regulado para o desregulado, tanto nos Estados Unidos como no Brasil, traduziu-se em um aumento constante de demanda, mesmo estando o setor sujeito a choques macroeconômicos e a eventos como os ataques de 11 de setembro. Associado ao período de desregulação, o modelo tradicional de companhia aérea, de custos altos (em especial os custos trabalhistas e de gerenciamento da empresa), tem sido confrontado com o modelo de baixo custo.

Nos Estados Unidos, após um frenético período inicial pós-desregulamentação, com a entrada de novas companhias, consolidou-se nos últimos quinze anos uma disputa entre as empresas de baixo custo e as empresas tradicionais. Como resultado dessa disputa praticamente todas as grandes companhias americanas sobrevivem em estado falimentar, e já se beneficiaram ou se beneficiam do Chapter 11, a Lei de Falências americana.

No Brasil o período de desregulamentação já evidenciou um aspecto conhecido do mercado. Boa parte das companhias aéreas líderes entre os anos 60 e 80 trabalhavam ajustadas a um período de controle estatal de preços, de custos subsidiados e de barreiras à entrada de concorrentes no setor. Acreditava-se que o setor, marcado por custos fixos muito altos e rentabilidade pequena, intimamente sujeito aos solavancos macroeconômicos, só se desenvolveria de forma controlada.

-------------------------------------------------------------------------------- Enquanto companhias disputam o mercado com preços livres, a infra-estrutura aeroportuária permanece monopolizada --------------------------------------------------------------------------------

Com a aposta na desregulação econômica, o cenário de mercado cativo, de custos parcialmente subsidiados e de preços controlados, foi progressivamente sendo alterado. A disputa concorrencial - como na guerra tarifária de 1999 - levou inicialmente à derrocada da Vasp e da Transbrasil. Em seguida a Varig, beneficiada pela nova legislação de falências, sobreviveu por um triz, acabando por se transformar no braço internacional da Gol. No novo cenário só restou espaço para as companhias com modelos gerenciais ajustados ao cenário de desregulação. Os dois grandes exemplos são a TAM e a Gol, que lideram o setor atualmente.

O modelo desregulado estimula as companhias de baixo custo e - conseqüentemente - de baixa tarifa, o que faz crescer a utilização da infra-estrutura aeroportuária. Além do mais, nesse cenário, as companhias apostam economicamente em concentrar seu tráfego aéreo em aeroportos centrais (os hub´s), distribuindo-o posteriormente para os aeroportos regionais. É o mesmo modelo vigente nos Estados Unidos e na Europa.

Aprofundando-se a compreensão da crise do transporte aéreo doméstico no Brasil para além dos aspectos de gerenciamento do tráfego, verifica-se uma reforma inacabada, a qual poderíamos denominar uma "desregulação pela metade". Por isso é indispensável que se pense em uma mudança jurídico-econômica da infra-estrutura aeroportuária.

Enquanto as companhias disputam o mercado com preços livres, a demanda cresce e novos concorrentes podem surgir, a infra-estrutura aeroportuária permanece monopolizada. A estatal Infraero administra os principais aeroportos do país sem uma estratégia de competição. Ainda que possa haver alguma variação de preços para a utilização dos aeroportos, é sabido que não há qualquer estímulo para concorrência.

Outro gargalo sensível associado à desregulação é o uso dos espaços de pouso e decolagens nos aeroportos (os slots) e de seus horários. É tímida ainda a ação da Anac - como se vê na Resolução nº 2, de 3 de julho de 2006 - na tentativa de aprimorar o acesso a ativo tão indispensável para as companhias aéreas. No caso dos slots seria possível tratá-lo como um ativo e estabelecer um sistema de preços. Esse sistema revelaria quais são os slots mais atrativos e disputados, por aeroporto e por horário, permitindo inclusive a instituição de um mercado de slots. Tal mudança deveria ser completada com a flexibilização do monopólio da Infraero na administração dos aeroportos, por meio de incentivos de mercado para a competição entre eles, levando ao fortalecimento de aeroportos periféricos e regionais.

O processo está inacabado. Levar para a infra-estrutura o processo de desregulação econômica do setor aéreo é o caminho para uma redistribuição da concentrada malha aérea, minorando os problemas relativos aos gargalos da infra-estrutura aeroportuária. A alternativa, manter uma desregulação sem promover a outra, leva o setor para a crise e a constante perspectiva de caos no sistema.

Leandro Novais e Silva é advogado, mestre e doutorando em Direito Econômico pela UFMG.