Título: Itamaraty cria cota para negros
Autor: Fleck, Isabel ; Bonfanti, Cristiane
Fonte: Correio Braziliense, 29/12/2010, Economia, p. 15

Concursos

Diplomacia nacional terá vagas para candidatos que se declararem afrodescendentes. Essa população contará com reserva de 10% na primeira fase do concurso do Instituto Rio Branco a partir de 1º de janeiro de 2011, conforme portaria a ser assinada nesta semana

Em sua última semana à frente do Ministério das Relações Exteriores, o chanceler Celso Amorim assinará uma portaria que garante uma chance a mais para candidatos negros entrarem no Itamaraty. Essa será a primeira cota para ingresso na carreira diplomática, e já estará em vigor a partir do próximo ano. Segundo o ministério, haverá uma reserva de 10% das vagas na primeira das quatro fases do concurso para candidatos que se declararem afrodescendentes. No primeiro ano do governo de Dilma Rousseff, 26 pessoas entrarão para a carreira diplomática, um número bem inferior à média de 107 aprovados nos últimos cinco concursos do Instituto Rio Branco.

A decisão foi comemorada por aspirantes a diplomata, como Valéria Maria Borges, 23 anos. A bacharel em ciências sociais, que se considera parda, já foi beneficiada com uma bolsa de R$ 25 mil oferecida pelo Instituto Rio Branco, desde 2002, a afrodescendentes que estejam estudando para entrar no Itamaraty. Para ela, a medida contribuirá para o processo de inclusão social de negros e pardos no Brasil. ¿Hoje, falta identificação entre o Itamaraty e a sociedade brasileira, pois, ao contrário da realidade do país, lá quase não há negros e pardos. A iniciativa é mais um passo contra o preconceito¿, disse Valéria, que, no Ensino Médio, ganhou bolsa de estudos em uma escola particular e entrou na Universidade de Brasília (UnB) por meio do sistema de cotas.

Natural de Luziânia (GO), a filha de pequenos agricultores se transferiu para a capital federal em 2004, com uma irmã, e hoje estuda oito horas por dia para o concurso. ¿Aqui, é mais fácil estudar. Se eu não recebesse a bolsa, não teria condições de pagar os cursinhos voltados para o Rio Branco¿. Para o Itamaraty, a medida está ¿em consonância com o previsto pelo Estatuto da Igualdade Racial¿, sancionado em julho pelo presidente Lula, depois de tramitar por 10 anos no Congresso Nacional.

Lacunas O ministério ainda não definiu questões sensíveis do processo de cotas, se haverá uma forma de atestar a afrodescendência dos candidatos e quantas serão as vagas destinadas a eles, já que esse número dependerá da quantidade de classificados na primeira fase a ser estipulada no edital. E ainda não há data para a divulgação do edital. ¿Esse é um passo a mais para fomentar a diversidade étnica dentro do Ministério¿, justificou um alto diplomata.

Para o Frei Davi Santos, diretor da Educafro, uma rede de pré-vestibulares comunitários para afrodescendentes e jovens de baixa renda, a decisão do ministro Amorim foi a resposta a uma luta de muitos anos. ¿Fico muito feliz de ver que está sendo atendida uma reivindicação antiga. É uma vergonha que, em um país com 51,3% de população afrodescendente, não tenhamos embaixadores e embaixadoras negros¿, afirmou.

Críticas A Lei nº 12.288, de 20 de julho de 2010, abre caminho para a criação de mecanismos que ampliem a presença de negros na administração pública. Mas as cotas para afrodescendentes nas universidades e em concursos públicos ainda são alvo frequente de críticas, e o partido Democratas (DEM) chegou a entrar com uma ação no Supremo Tribunal Federal para suspender a adoção das cotas pela UnB.

Já o sociólogo Demétrio Magnoli considera um ¿erro trágico¿ o estabelecimento de uma reserva de vagas para negros também na admissão ao serviço diplomático. ¿Isso passa a determinar direitos para as pessoas em função de uma classificação de raça, transformando-a numa figura de lei no Brasil¿, diz. A seu ver, a medida evidencia a ¿falácia do argumento de que há uma desvantagem de partida¿ para negros e pardos, já que todos que prestam o concurso precisam ter diploma universitário. ¿Essa medida é obviamente um privilégio para pessoas com uma determinada cor da pele e que tiveram um background educacional pior do que outros candidatos¿, criticou.

Empurrão oficial No Itamaraty, o programa de ação afirmativa se limitava, até então, à chamada ¿Bolsa Prêmio de Vocação para a Diplomacia¿, lançada em março de 2002, ainda no governo de Fernando Henrique Cardoso. Desde então, 309 benefícios de R$ 25 mil anuais foram concedidas a 198 bolsistas, para o pagamento de cursos preparatórios ou professores particulares, compra de livros e material de estudo. Do total de beneficiados, 16 foram aprovados no concurso.