Título: Bem-vindo ao admirável mundo novo da LFT sintética
Autor: Moura, Alkimar
Fonte: Valor Econômico, 14/06/2007, Opinião, p. A14

Após uma série de idas e vindas, o Tesouro tem conseguido finalmente colocar títulos públicos pré-fixados, as Letras do Tesouro Nacional e as Notas do Tesouro Nacional F, (LTNs e NTNFs) no mercado, com prazos que já chegam a 10 anos de vencimento. É certamente um feito importante, dado que essa tentativa de alongar a dívida pública com as LTNs, e mais tarde com as NTNFs, foi objeto de várias iniciativas anteriores, desde o início do Plano Real, frustradas quase todas pela emergência de crises internas ou externas, o que obrigava o emissor a recomprar os títulos, trocando-os pelo que pode ser denominado de "ativo de última instância", ou seja, as Letras Financeiras do Tesouro (LFTs). Estas, por serem corrigidas diariamente pela própria taxa básica de juros, protegem o investidor contra elevações imprevistas na taxa de juros. Cada uma destas mudanças significava um retrocesso na política monetária, com a perda relativa da sua capacidade de influenciar a demanda agregada e a taxa de inflação. Além disso, todo o impacto da mudança de juros determinada pela política monetária repercutia integral e instantaneamente no custo da dívida pública, piorando os indicadores de solvência do setor público e agravando a percepção de risco dos investidores brasileiros e estrangeiros em obrigações governamentais.

Ao proteger completamente o investidor de variações na taxa básica de juros, a LFT é, na verdade, um seguro oferecido pelo Tesouro ao mercado, cobrando um prêmio zero. Daí sua enorme popularidade em tempos de instabilidade macroeconômica, pois ela permite ao emissor rolar a dívida pública sem abrir acentuadamente os prêmios necessários para girar a dívida com títulos prefixados. E fatores de instabilidade não faltaram nos anos de 1994 até 2002, o que explica as mudanças na composição da dívida pública no período.

-------------------------------------------------------------------------------- Ao proteger o investidor de variações na taxa básica de juros, a LFT é, na verdade, um seguro oferecido pelo Tesouro --------------------------------------------------------------------------------

Desde 2003, a economia internacional entrou em um ciclo muito favorável, pela combinação de crescimento econômico e inflação declinante, apesar dos enormes e crescentes desequilíbrios nas contas externas dos Estados Unidos, de um lado, e da China e de outros países credores de outro. A contrapartida destes desajustes tem sido um excesso de liquidez no mundo, gerando uma situação de taxas de juros extremamente baixas e mesmo juros reais negativos em alguns casos. O Brasil tem se beneficiado destas condições, pelo influxo de capitais decorrente da diferença entre taxas internas e externas de juros e pelos extraordinários ganhos nas relações de troca, derivados dos elevados preços das commodities exportadas pelo país. A conseqüente valorização do real no mercado de câmbio contribui para a política monetária, derrubando a taxa de inflação para abaixo da meta oficial. Neste cenário benigno, a perspectiva de queda na taxa real de juros favorece a colocação de papéis prefixados longos e o Tesouro tem aproveitado essa benesse para mudar o perfil da dívida pública. Em abril, os títulos prefixados já representaram 36,1% do estoque da dívida mobiliária federal interna em mercado, praticamente o mesmo valor representado pela dívida corrigida pela LFT (37%). Este é, com certeza, um resultado digno de nota que contribui tanto para melhor gestão da dívida mobiliária do Tesouro quanto para maior eficiência da política monetária do Banco Central.

Paralelamente àquela mudança no perfil da dívida, tem-se observado também um crescimento acentuado nas operações no mercado à vista de LTN e NTNF, combinadas com transações nos mercados futuros de juros de curtíssimo prazo, com o objetivo de transformar os títulos prefixados em pós-fixados, vinculados à variação na taxa de juros dos certificados de depósitos interfinanceiros (CDIs). Em outras palavras, após o longo período de reinado da LFT, quando o Tesouro realiza um esforço para rolar sua dívida com títulos prefixados, o próprio mercado financeiro volta a transmutar os papéis pré em pós, apoiados nas operações travadas nos mercados futuros de juros. É como se o mercado, por iniciativa própria, passasse a desfazer as melhores intenções do Tesouro, revelando sua preferência por títulos indexados às taxas diárias de juros, replicando a LFT verdadeira pela criação de uma LFT sintética, combinando operações à vista com as correspondentes travas no mercado de derivativos. Será que, após anos de convivência com a indexação diária da taxa de juros, o mercado viciou-se na velha droga e não consegue abandoná-la, recorrendo a formas sintetizadas em laboratório da mesma droga?

Este movimento aparentemente paradoxal das instituições financeiras e dos investidores institucionais não deveria preocupar nem ao Tesouro nem ao Banco Central. Na verdade, ele produz pelo menos, duas conseqüências favoráveis: em primeiro lugar, desloca o "locus" da formação de preços dos títulos prefixados para o mercado futuro, pois este detém mais liquidez do que o mercado à vista, até pela menor necessidade de disponibilidades financeiras por parte dos agentes. Em segundo lugar, na situação atual, o mercado privado assume os custos e riscos de prover o seguro contra variações imprevistas na taxa de juros, risco este que era bancado integralmente pelo Tesouro a custo zero, através da emissão da LFT. Desta forma, a sociedade transfere para o mercado financeiro uma função estritamente privada e isto certamente representa um benefício na gestão da dívida pública. Portanto, embora possa parecer que nada mudou na superfície, o admirável mundo novo da LFT sintética representa um passo pequeno, porém firme, no sentido de consolidar o mercado secundário de títulos públicos entre nós.

Alkimar R. Moura é professor das Escolas de Administração de Empresas e de Economia de S.Paulo, da Fundação Getulio Vargas.