Título: Continuísmo com continuidade?
Autor: Pinheiro, Armando Castelar
Fonte: Correio Braziliense, 29/12/2010, Opinião, p. 19

A cada quatro anos, quando muda o comando do país, a expectativa de uma vida melhor, característica da virada de ano, se transmite para o novo governo. Desta vez não é diferente. Mas há uma novidade: não há na história recente do país uma transição com tanto continuísmo como esta. Será o novo governo marcado também pela continuidade de políticas, em especial as do segundo mandato? Sim e não. Sim, pois essa foi a proposta da campanha eleitoral e a manutenção de quase todo o ministério. Lula sinaliza nessa direção. Mas não, pois na economia o novo governo não terá os mesmos graus de liberdade que o que sai.

Foram quatro os grandes aliados do governo Lula. Primeiro, o câmbio desvalorizado do final de 2002. É fato que isso jogou a inflação para cima e exigiu a disciplina fiscal e monetária que caracterizou 2003, mas, por seu lado, ajudou a gerar elevado superavit comercial, reduzindo as necessidades de financiamento externo. Mais importante ainda: transformou o câmbio na grande âncora nominal do governo. Entre dezembro de 2002 e novembro de 2010, o real se valorizou 112% frente ao dólar; corrigindo para a inflação nos EUA e no Brasil, a apreciação sobe para 144%.

Em condições normais, uma valorização cambial dessa monta geraria grande deficit externo. De fato, depois de atingir 1,9% do PIB nos 12 meses até abril de 2005, ainda na esteira do real depreciado, o saldo em conta corrente caminhou gradualmente para o terreno negativo, com o Banco Central projetando para 2010 deficit externo de 2,9% do PIB. Esse deficit seria ainda maior, porém, se o governo não tivesse contado com o segundo aliado: evolução muito favorável dos preços de exportações e importações. Se os preços tivessem ficado constantes, em dólares, no patamar de 2002, o deficit externo seria 1,5% do PIB maior.

Um terceiro aliado foi contar com uma reserva de capital instalado e trabalhadores ociosos. Assim, o grau de utilização da indústria brasileira, de acordo com a FGV, saiu de 80% em outubro de 2002 para 86,4% oito anos depois, enquanto a taxa de desemprego caiu de 11,2% para 6,1% no mesmo período.

Um último aliado foi a credibilidade da política macroeconômica herdada do governo FHC: metas fiscais, autonomia do Banco Central e câmbio flutuante. Assim, bastou ao governo demonstrar compromisso com esse modelo, elevando a meta de superavit primário e entregando postos-chaves às pessoas certas para ganhar a confiança do mercado.

Os quatro elementos permitiram ao governo conciliar uma inflação média anual de 5,8% com crescimento do PIB de 4% ao ano em 2003-2010. Sem eles, ou o PIB teria crescido menos, ou a inflação teria sido maior.

O novo governo quer conciliar um crescimento acima de 4% ao ano, inflação na meta e continuidade da política econômica, mas não poderá contar com os aliados do governo que sai. Assim, o deficit em conta-corrente deve aumentar mais, mas dificilmente isso poderá ocorrer no mesmo ritmo do último lustro. Também não há muito mais espaço para elevar a utilização dos fatores de produção.

Da mesma forma, a taxa de câmbio não deve continuar se apreciando e os preços externos melhorando como nos últimos oito anos. A credibilidade da política econômica foi abalada pelas inovações contábeis na área fiscal e a percepção de alguns de que fatores políticos pesaram nas decisões de política monetária.

Como ocorreu em 2003, o novo governo assume com a inflação em alta e trazê-la de volta ao centro da meta deveria ser a primeira prioridade. O atual patamar inflacionário ¿ 5,9% em 2010 ¿ é não apenas alto como algo surpreendente, considerando a queda no preço em reais das importações ex-combustíveis e que os preços administrados devem subir apenas 3,5% este ano.

Reduzir a inflação não será simples: 2011 começará com a maior expectativa de inflação para o ano que entra desde 2005. Além disso, no próximo ano, os preços administrados e das importações terão comportamento menos benigno, o que, junto a um mercado de trabalho aquecido, coloca um piso elevado para a inflação.

Mais à frente, novos desafios se colocarão: como elevar a taxa de investimento, para sustentar o crescimento acima de 4%; como limitar o deficit externo em um mercado internacional que ficará menos pleno de liquidez e mais desconfiado de países com grandes necessidades de financiamento externo? São problemas que só se tornarão urgentes a partir de 2012, mas cuja solução é demorada e deveria começar a ser implantada o quanto antes.

Um feliz 2011 para todos.