Título: A reforma e a recente evolução do Supremo
Autor: Wald, Arnoldo
Fonte: Valor Econômico, 14/06/2007, Legislação & Tributos, p. E2

O que caracteriza atualmente a nossa corte suprema é uma mudança de espírito e de preocupação, tanto em virtude da reforma do Poder Judiciário, iniciada com a Emenda Constitucional nº 45, de dezembro de 2004, quanto pelo fato de se ter criado uma nova relação construtiva e transparente entre o tribunal e a sociedade civil.

Efetivamente, foi nos últimos anos que a sociedade civil passou a se interessar pelas atividades do Poder Judiciário, em virtude da maior "judiciarização" da vida brasileira e da possibilidade de obter informações em tempo real com o desenvolvimento da tecnologia e dos meios de comunicações. Paralelamente, a reforma do Judiciário deixou de ser um ideal programático de alguns magistrados e juristas para transformar-se em um movimento contínuo liderado pelo Judiciário e pelos advogados e contando, também, com o apoio dos demais poderes e de todas as classes sociais.

A reforma do Judiciário deixou de ser um projeto ideológico para se transformar em uma verdadeira necessidade fisiológica, quando o número de processos julgados anualmente ultrapassou a barreira dos 100 mil, tendo quadruplicado nos últimos 20 anos. Trata-se de uma decisão que se impunha diante da quantidade de recursos, que aumentava a cada ano, impossibilitando que os litígios fossem resolvidos em tempo razoável, como determina a Emenda Constitucional nº 45. Não bastava, todavia, dar maior rapidez aos julgamentos. Era ainda preciso estancar o fluxo de recursos, admitindo um critério de seleção e evitando os julgamentos repetitivos. No fundo, precisávamos de decisões que, além de justas e eqüitativas, fossem também relativamente rápidas, eficientes e coerentes, dando ao país a necessária segurança jurídica.

Procurou, pois, o Supremo Tribunal Federal (STF) garantir a uniformidade das suas decisões, evitando julgamentos que pudessem abraçar teses diversas em virtude de modificação momentânea da composição das turmas ou do plenário, por ausência de algum dos seus integrantes. Ao mesmo tempo, criaram-se mecanismos para que os tribunais inferiores obedecessem às orientações fixadas pela corte suprema. Para tanto, tinham sido necessárias não só a reforma constitucional mas também a aprovação, pelo Congresso Nacional, de duas leis recentes - a Lei nº 11.417, de 19 de dezembro de 2006, referente à súmula vinculante, e a Lei nº 11.418, da mesma data, restringindo o conhecimento dos recursos extraordinários aos casos de "repercussão geral de ponto de vista econômico, político, social ou jurídico, que ultrapassem os interesses subjetivos da causa". Esta última lei necessitou, para sua aplicação, de complementação por normas do Supremo, aprovadas pela recente Emenda Regimental nº 21, de 30 de abril de 2007. Por outro lado, as três primeiras súmulas acabam de entrar em vigor.

Algumas normas regimentais adotadas em 2006 puderam também dar maior rapidez ao processo, descongestionando os trabalhos do tribunal. Neste sentido, os poderes dados ao presidente do tribunal para indeferir os recursos que não estão devidamente instruídos, pela Emenda Regimental nº 19, de 16 de agosto de 2006, representaram certamente uma importante medida para aliviar a carga processual da corte.

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Três outras tendências relevantes caracterizam a evolução atual do Supremo: a ampla defesa dos direitos individuais em habeas corpus, a preocupação com as garantias do contraditório, inclusive na área administrativa, e a análise econômica dos resultados dos julgamentos. Não se trata de adotar o que se poderia denominar o "conseqüencialismo", mas de ponderar os efeitos econômicos e sociais das decisões proferidas, aplicando o princípio da proporcionalidade.

Por outro lado, novos instrumentos - como a argüição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) - passaram a ser consagrados. Trata-se de uma construção que foi objeto de um projeto elaborado por uma comissão presidida pelo ministro Gilmar Mendes e que foi convertido em lei em 1999. Em 2006, foi, em uma ADPF, que o ministro Sepúlveda Pertence concedeu uma importante medida liminar suspendendo os processos nos quais se discutia a inconstitucionalidade do Plano Real.

Entre as recentes decisões da corte suprema, várias se destacam não só pela sua importância prática, mas também pela evolução que evidenciaram na jurisprudência da casa. Assim, por exemplo, no plano monetário, o julgamento da constitucionalidade de tablita - no Recurso Extraordinário nº 141.190, cujo acórdão foi publicado em 2006 - define adequadamente a natureza, o conteúdo e a vigência das normas de direito monetário, responsáveis por milhares de processos. Entenderam os votos vencedores, mudando a jurisprudência anterior, que o regime monetário, abrangendo os indexadores legais fixados nos casos de inflação ou de deflação, incide imediatamente, inclusive em relação aos contratos em curso. Por outro lado, a decisão da tablita ressalvou que a decisão governamental não podia ser arbitrária, obedecendo aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. A soberania monetária do Estado deve ser respeitada, mas não pode transformar-se em uma ditadura monetária, abrangendo um confisco, que é constitucionalmente vedado.

A mesma afirmação da peculiaridade e da prevalência da política monetária consta, aliás, na fundamentação da maioria dos votos da Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) nº 2.591, que reconheceu a incidência do Código de Defesa do Consumidor (CDC) sobre os bancos, mas ressalvou que o referido diploma legal não abrange as normas referentes ao custo e ao rendimento do dinheiro nas operações financeiras.

Verifica-se, pois, nestas várias decisões, uma preocupação de manter o equilíbrio entre as necessidades econômicas da coletividade e a adequada e eficiente proteção dos direitos individuais. Com as novas medidas, a corte suprema diminuirá sensivelmente o número de recursos e acelerará o julgamento dos mesmos, além de evitar decisões repetitivas que congestionam o Poder Judiciário. O melhor funcionamento da Justiça ensejará maior segurança jurídica, incentivando os investimentos a médio e longo prazo. Teremos, assim, não só a estabilidade econômica e monetária, mas também a estabilidade jurídica, que é condição necessária tanto do crescimento quanto do desenvolvimento do país.

Arnoldo Wald é advogado, sócio do escritório Wald e Associados Advogados, professor catedrático de direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e membro da Corte Internacional de Arbitragem

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