Título: Sem Lula, Dilma prega coragem e ousadia
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Fonte: Correio Braziliense, 02/01/2011, Política, p. 2

Primeira mulher presidente do Brasil, Dilma Rousseff é empossada, diz que sua gestão será uma continuidade da administração Luiz Inácio Lula da Silva e destaca que, embora a eleição seja uma vitória feminina para o país, governará em benefício de todos

A vida, lembrou a nova presidente do Brasil, Dilma Rousseff, é assim: ¿Esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta¿. Ao recorrer ao conterrâneo Guimarães Rosa, ela ainda encerrou: ¿O que a vida quer da gente é coragem¿. Desde às 16h49 de ontem, quando recebeu a faixa presidencial das mãos do agora ¿ex¿ Luiz Inácio Lula da Silva, a vida de Dilma esquentou e apertou. Desinquietou de vez. E, acima disso tudo, vai demandar excesso de coragem.

Pela primeira vez em 121 anos de República Federativa do Brasil, do alto dos seus quase 56 milhões de votos, uma mulher foi empossada presidente. ¿A vontade de mudança de nosso povo levou um operário à Presidência. A força dessas transformações permitiu que vocês tivessem uma nova ousadia, colocar pela primeira vez uma mulher na Presidência do Brasil¿, destacou.

Mas a coragem a que se referiu Dilma ultrapassa as barreiras do gênero. No primeiro dia do resto da sua vida, aquele em que, enfim, começou a se desvincular da imagem de Lula, a presidente do país reforçou suas convicções na continuidade ¿ palavra recorrente nos dois discursos proferidos durante as solenidades de ontem, tanto no Congresso Nacional quanto no Palácio do Planalto. Continuidade com personalidade própria, ao que tudo indica. Ontem mesmo, ela abordou questões importantes da sua futura administração, como a solidificação da classe média, erradicação da pobreza e ampliação do ProUni.

¿Não venho para enaltecer minha biografia, mas para glorificar cada mulher brasileira. Meu compromisso é honrar as mulheres, proteger os mais frágeis e governar para todos¿, discursou.

Mas Dilma tem consciência de que a tarefa não é simples. O ¿governar para todos¿ ¿ ela mesma fez inúmeras referências ¿ significa dar sequência à superlativamente aprovada gestão Lula. ¿Um presidente que mudou a forma de governar. E minha missão agora é consolidar essa passagem¿, admitiu. ¿Já fizemos muito nos últimos oito anos, mas ainda há muito por fazer. E foi por acreditar que nós podemos fazer mais e melhor que o povo brasileiro nos trouxe até este momento¿, completou.

O que Lula serviu e ainda servirá para o bem neste novo governo Dilma também servirá para um mal perigoso e, de certa forma, inevitável: o da comparação. A primeira de muitas estampou-se claramente no gramado da Esplanada dos Ministérios: aproximadamente 30 mil pessoas acompanharam a cerimônia de posse, menos de 25% da multidão que saudou a chegada do ex-metalúrgico ao Planalto em 2003.

Com aprovação pessoal na casa dos 87% e um modo peculiar de governar, com o qual a população se identificava facilmente, Lula fez esforço para não roubar a cena ontem. Tanto que retirou-se rapidamente, logo após a transmissão da faixa. Mas nem isso foi suficiente. Acabou sendo dele a imagem mais emocionante do dia, quando atravessou a rua que separa o Planalto da Praça dos Três Poderes, para chorar e despedir-se nos braços do povo. ¿Conviver todos esses anos com o presidente Lula me deu a dimensão do que é um líder apaixonado pelo seu povo. A alegria que sinto pela minha posse se mistura com a emoção de sua despedida¿, havia ressaltado Dilma minutos antes.

A transmissão de cargo na Presidência da República marcou também uma mudança clara de estilo. Se Lula pontuou sua gestão pela espontaneidade, Dilma permite-se raros arroubos. Ontem, limitou-se a dois. Um no discurso do Congresso, quando chorou ao referir-se àqueles que combateram a ditadura, e outro já no Planalto, quando em um gesto não previsto pelo protocolo, beijou a bandeira brasileira que era segurada por um dos militares. Uma terceira ousadia também pôde ser notada. Em seu primeiro dia, ela já inaugurou um novo bordão. Sai o ¿companheiros e companheiras¿ e entra o ¿queridos brasileiros, queridas brasileiras¿.

A primeira mulher presidente do Brasil, cuja a trajetória desinquietou de vez desde ontem, parece entender que a nova vida vai lhe cobrar um pouco mais do que apenas coragem.

Desfile sob tempestade

TIAGO PARIZ

Nunca um atraso custou tão caro para Dilma Rousseff, a nova presidente da República. Se não tivesse demorado 20 minutos além do previsto para começar a desfilar pela Esplanada dos Ministérios, teria conseguido interagir mais com os cerca de 30 mil militantes petistas e simpatizantes que aguardavam para ver ao menos um relance da primeira mulher a ocupar o Palácio do Planalto.

Ao herdar uma característica do antecessor e mentor político, Luiz Inácio Lula da Silva, campeão em colecionar atrasos em cerimônias, Dilma passou pela multidão com a capota do Rolls-Royce presidencial fechada devido à forte chuva ¿ ao acordar, às 7h, a ansiedade da presidente aumentou quando ela viu o céu carregado.

Apesar do aguaceiro, Dilma abaixou o vidro da janela do automóvel, que na primeira metade do trajeto estava fechado, para acenar ao público. Ela nem sequer conseguiu fazer o tradicional percurso de subir a rampa do Congresso e teve de entrar pela chapelaria, um cenário sem glamour, que parece mais um estacionamento de alta rotatividade de carros oficiais.

Toda a ansiedade no trajeto, refletido num sorriso contido enquanto estava enfurnada no carro ao lado da filha, Paula, deu lugar a um momento catártico no Congresso. Ela entrou no plenário da Câmara acompanhada pelo vice, Michel Temer (PMDB), e pelos presidentes do Senado, José Sarney (PMDB), e da Câmara, Marco Maia (PT), aos gritos de ¿Olê, olê, olá, Dilma, Dilma¿. A presidente, sempre fria em momentos mais emotivos, foi tomada pela felicidade. Ao sentar na cadeira mais alta do Congresso e ouvir de Sarney que estava sendo empossada presidente, Dilma deu um suspiro que parecia misturar alívio com contentamento.

A formalidade documental para alçá-la à Presidência da República durou 10 minutos. O discurso durou cinco vezes mais, com direito a choro contido quando ela lembrou dos companheiros em armas que caíram na luta contra a ditadura. Ao sair do Congresso, a chuva havia passado e Dilma conseguiu desfilar em carro aberto nos 200 metros que a levaram ao Palácio do Planalto.

A ex-militante, que lutou, foi presa e torturada pelos militares, passou a tropa em revista, agora como comandante-em-chefe, a quem seus ex-perseguidores devem obediência. ¿De uma certa forma, estou me sentindo como se aqueles que lutaram contra a ditadura estivessem subindo essa rampa agora¿, disse, em tom efusivo, Ieda Seixas, que ficou um ano e meio presa com Dilma em São Paulo.

Brincadeira Na rampa, Dilma olhou para Lula e acenou em tom de brincadeira, como quem gostaria de dizer: ¿O senhor desce ou eu subo?¿. Um dos ensinamentos que o mentor passou para sua sucessora é a informalidade, que ela ainda reluta em aceitar. Dilma, ao lado de Temer, subiu a rampa, trocou um longo e apertado abraço com Lula e todos se dirigiram ao parlatório, para a passagem da faixa. Depois, Dilma depois desceu a rampa para dar adeus à pessoa responsável por colocá-la sob os holofotes.

Sozinha, recebeu os cumprimentos de chefes de Estado e representantes de delegações estrangeiras, como o venezuelano Hugo Chávez, que chegou a dizer que ¿as mulheres são superiores aos homens¿. A conversa mais longa foi com a secretária de Estado norte-americana, Hillary Clinton. Para fechar as formalidades, empossou os ministros e bateu a foto oficial do governo que começou ontem.

Colaborou Vinicius Sassine

Coadjuvantes com vista privilegiada

Breno Fortes/CB/D.A Press As primeiras honras militares que Dilma Rousseff recebeu como chefe de Estado, em frente ao Congresso, foram comandadas pelo coronel Elias Martins Filho (E), 50 anos. Comandante do Batalhão da Guarda Presidencial, ele acompanhou Dilma na revista às tropas, enquanto ela era aplaudida pelas pessoas que acompanhavam a solenidade. Elias, há 35 anos no Exército, há dois anos comanda a Guarda Presidencial. ¿Existe um respeito grande à Presidência, independentemente de quem seja o presidente ou a presidente.¿ Após a revista, Dilma entrou no Rolls-Royce presidencial. A denominação de seu cargo estava grafado na placa do veículo como ¿presidenta da República¿, como ela gosta de ser chamada. Seu motorista, Valdecir Ribeiro, afirmou que partiu dele a iniciativa de fazer a modificação. Ele dirige para Dilma há mais de cinco anos e, ontem, estava emocionado: ¿Fiquei feliz em fazer parte da história¿. Ele será o principal motorista entre outros três que trabalham para a nova presidente. (Vinicius Sassine e Edson Luiz)

Transportes, o primeiro

» Alfredo Nascimento foi o primeiro ministro da gestão Dilma Rousseff a receber o cargo do antecessor. Na noite de ontem, o comandante da pasta de Transportes afirmou que o desafio de sua administração será melhorar a qualidade dos serviços oferecidos à população. De acordo com Nascimento, que deixou a pasta no ano passado para concorrer à reeleição como senador do Amazonas, do primeiro ano do governo Lula até o fim de 2010, o Ministério dos Transportes recebeu R$ 53,4 bilhões em recursos. O ministro fez elogios aos avanços do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e disse que depois que o governo garantiu recursos para o projeto a missão apresentada por Dilma é melhorar a gestão. ¿Meu desafio mudou de patamar, há oito anos, precisávamos de recursos, agora vamos melhorar a aplicação.¿ (Cristiane Bonfanti)

Erenice ressurge das sombras

A ex-ministra da Casa Civil Erenice Guerra (D) deixou a penumbra política e voltou à cena ontem, durante a cerimônia de posse de Dilma Rousseff. Pessoa de confiança irrestrita da nova presidente da República até o escândalo de suspeita de tráfico de influência que a derrubou do cargo, Erenice acabou voltando ao Palácio do Planalto cerca de três meses depois de sair pela porta dos fundos. Na época, ela pediu demissão na esteira de denúncias de favorecimento a empresas ligadas ao filho lobista, Israel Guerra, e de ter vários familiares que eram funcionários fantasmas em cargos públicos. Na semana passada, ela preferiu não marcar presença na cerimônia que registrou os atos do governo Lula em oito anos como presidente. Convidada para a posse, decidiu enfrentar os flashes e ensaiar uma volta discreta à Esplanada dos Ministérios, lugar em que permaneceu por quase oito anos como a sombra de Dilma Rousseff. (Ivan Iunes)

Trabalho começa hoje

» Josie Jeronimo » Vinicius Sassine

No discurso no parlatório do Palácio do Planalto, a presidente Dilma Rousseff já havia anunciado: ¿Agora é hora de trabalho¿. Na prática, esse trabalho começa hoje, um domingo, segundo dia do ano. Ela inaugura sua agenda de compromissos e começa a distribuir missões entre os novos ministros.

Ao comandante da pasta de Saúde, Alexandre Padilha, que receberá o cargo amanhã, às 15h, já solicitou que dialogue com governadores e prefeitos sobre uma nova forma de financiamento do setor. Ao ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, Fernando Pimentel, caberá a missão de encontrar solução para tornar o preço dos produtos brasileiros tão atrativos quanto os chineses, que inundam o mercado nacional e impedem a ampliação dos empregos no setor produtivo do país. ¿A instrução que tenho da presidenta é recuperar o espaço que hoje está sendo ocupado em grande parte por produtos importados, principalmente, dos países asiáticos¿, disse Pimentel. Garibaldi Alves, novo ministro da Previdência, afirmou não ter nenhuma ação imediata. ¿Geralmente nos primeiros dias não se ataca. Vou me organizar para ter o melhor ataque.¿ Garibaldi disse ainda não ter pressa com a reforma da Previdência.

Paulo Bernardo, que deixou o Planejamento para assumir o Ministério das Comunicações, disse ter suas bandeiras definidas: universalização da telefonia e da banda larga, e eliminação dos ¿problemas de gestão¿.

Já o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, recebe hoje o cargo, na cerimônia de transmissão marcada para as 11h e, na terça-feira, tem reunião agendada com a presidente. Cardozo discutirá a elaboração de política para integrar as forças policiais dos estados em estratégia de combate ao crime organizado. Dilma dará o aval para que o ministro convoque todos os governadores, em fevereiro, para elaborar uma pauta comum com os estados. A ação articulada dos governos estaduais, ressaltou, poderia permitir a integração do banco de dados das polícias e os setores estaduais de inteligência, criando um sistema nacional, mais eficaz na interceptação de drogas e armas que cruzam o país até chegar nas mãos dos bandidos. Ainda hoje, a presidente se reunirá com cinco representantes de governos estrangeiros para discutir pontos da política externa.