Título: 'Sem mágicas', Lula reafirma política industrial
Autor: Brandimarte, Vera e Safatle, Claudia
Fonte: Valor Econômico, 21/06/2007, Brasil, p. A8

O governo está preocupado com a apreciação do real e adotará medidas para compensar os setores mais atingidos pelo dólar fraco, mas não fará "mágica". Para esse tema, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva adotou o discurso do presidente do Banco Central, Henrique Meirelles.

"Não tem milagre", disse ele nesta entrevista exclusiva ao Valor, concedida na sala de reunião do gabinete presidencial do Palácio do Planalto. "As pessoas têm que saber que o câmbio é flutuante. Em algum momento o mercado vai se ajustar e é assim que nós vamos conviver."

Ao mesmo tempo em que defende uma postura mais liberal em relação ao câmbio, o presidente defendeu, enfaticamente, a adoção de uma política industrial que ajude setores ineficientes ou escolha os que precisam de mais investimentos. No primeiro caso, estão indústrias de calçados e têxteis. No segundo, os setores siderúrgico e de papel e celulose.

Na entrevista, o presidente não se furtou a tratar de temas tabus para sua base de apoio política e sindical, como as reformas trabalhista e previdenciária e a defesa do aumento das importações. "Tenho dito aos dirigentes sindicais que é preciso parar de ter medo da reforma (trabalhista)." A seguir, a íntegra da entrevista:

Valor: Seu governo consolidou a estabilização da economia e agora, com a inflação sob total controle, tem que decidir a meta de 2009. O sr. quer manter a meta de 4,5% ou reduzi-la?

Luiz Inácio Lula da Silva: Quando o CMN se reunir para discutir a meta de inflação de 2009 (dia 27 de junho), vai ter que analisar o sacrifício que fizemos no primeiro mandato para consolidar a inflação entre 4,5% (meta), 3,5% (efetiva). Vocês são testemunhas do sacrifício que fizemos em 2003. São testemunhas também do sacrifício que voltamos a fazer em 2005, porque a inflação dava sinais de retorno e, aí, fomos obrigados outra vez a arrochar. Agora, estamos vivendo um momento de muita tranqüilidade. Penso que não devemos fazer mais sacrifício, reduzindo a meta. Seria bom, e essa é uma opinião muito pessoal, que a gente refletisse bem. Já fizemos o sacrifício para 4,5% e foi muito duro. Gostaria que pensássemos politicamente, que não temos mais o direito de fazer um novo arrocho.

Valor: Diante da inflação efetiva de 3,5% estimada para este ano, definir uma meta de 4,5% para 2009 não seria sinal de que o governo optou por "inflacionar" um pouco?

Lula: Não. Se mantivermos 4,5% ou 4% por dez anos, será uma bênção para este país. Mas, obviamente, você pode ter 4,5% ou 4% como meta mas reduzir (a inflação) a 2%. O que importa na economia é a seriedade com que passamos para a sociedade os nossos atos. Não tem mágica. As pessoas vão se acostumando a ganhar mais pelo aumento de unidades vendidas e não pelo aumento de preços. Ao mesmo tempo, acho importante utilizar as importações como uma espécie de porta que você abre quando precisa controlar determinados preços e fecha quando precisa resolver problemas de desenvolvimento industrial.

Valor: Esse caminho, o sr. crê, nos leva ao crescimento sustentado?

Lula: Toda a situação e o horizonte internacional me fazem crer que o Brasil encontrou um caminho a ser seguido de forma definitiva. Antes, não se combinava nunca crescimento das exportações com crescimento das importações. É importante que a balança comercial cresça, mas não precisa uma balança sempre com vantagem imensa como estamos tendo. Precisa crescer um pouco importações e crescer o mercado interno. Um das razões do grande momento que estamos vivendo é que o mercado interno está ficando vigoroso. Saímos de R$ 300 bilhões para quase R$ 800 bilhões de crédito. O consignado é um sucesso.

Valor: O que fez o sr. se convencer de que o próprio crescimento da economia, e não novas reformas, ajustaria as contas públicas de agora em diante? Não há mais o que fazer com os gastos públicos?

Lula: Há muito para fazer. Administrar um país é mais ou menos como administrar a nossa casa. A gente aumenta o gasto quando pode e diminui quando é necessário. Nós trabalhamos muito para diminuir os gastos do Estado brasileiro, sempre levando em conta que não se pode jogar em cima dos assalariados do governo a responsabilidade de fazer a economia que o Estado necessita. Já determinamos ao ministro do Planejamento que faça estudos para ver, ministério por ministério, onde a gente pode conter despesa. Quando eu falo que o crescimento resolve parte do problema é porque em casa que não tem pão todo mundo briga e ninguém tem razão. De um lado, todo mundo mais liberal acha que a gente vai resolver o problema da humanidade fazendo um arrocho na Previdência Social. Do outro, há setores da esquerda que acham que tudo vai ser resolvido quando baixar a taxa de juros. Na minha opinião, pela prática de 4 anos e meio, nem um nem outro.

Valor: Por quê?

Lula: Primeiro, porque não tem reforma da Previdência que não seja uma sangria política em qualquer país do mundo. Temos consciência de que a sociedade brasileira está ficando mais velha, está vivendo mais, e isso é ótimo. Isso precisa de um ajuste na Previdência Social, por isso constituímos um grupo de trabalho para pensar uma política de uma nova previdência. Ela pode ser para uma nova geração, não tem problema. O importante é mostrar a todos que no longo prazo vamos ter uma previdência sustentável, que não seja tão deficitária, que dê tranqüilidade àqueles que pagaram.

Valor: A Comissão da Previdência termina o trabalho em agosto?

Lula: Termina e aí vamos ver o resultado, se transformamos isso em projeto de lei, se debatemos mais.

Valor: Por que tanto debate?

Lula: Porque já acompanhei esse assunto como dirigente sindical e deputado. Toda vez que se tenta fazer uma reforma de forma atabalhoada, com o Executivo pensando a reforma e mandando para o Congresso, ela não acontece. Não quero que seja uma proposta de reforma do governo. Quero que seja uma proposta compreendida pela sociedade. Se a sociedade compreender, poderemos ter uma reforma na Previdência que será debatida no Congresso, mas será votada, porque será fruto de um consenso.

Valor: Ainda no seu mandato?

Lula: Espero que seja. Da mesma forma que eu espero seja votada a reforma trabalhista.

Valor: O senhor não abandonou a reforma trabalhista?

-------------------------------------------------------------------------------- Não temos como abrir mão da CPMF agora. O Congresso tem a liberdade de pensar em acabar com ela a longo prazo." --------------------------------------------------------------------------------

Lula: Não abandonei. O problema é que fizemos o fórum (do trabalho) e constituímos a política de reforma da estrutura sindical brasileira. Ela foi aprovada na comissão, nós mandamos ao Congresso. Lá, o debate voltou praticamente à estaca zero porque cada deputado se sente um entendedor do assunto, o que é normal, porque cada um representa um segmento da sociedade. Em relação à reforma trabalhista, tenho dito aos dirigentes sindicais que a gente precisa parar de ter medo, precisamos é construí-la de forma que ela não penalize o Estado, o setor produtivo e os trabalhadores. Temos que pensar que, com os avanços tecnológicos e a reestruturação produtiva que aconteceu no mundo, não precisamos continuar com a mesma legislação de 1943. É preciso que se adentre o mundo do trabalho hoje, veja qual é a realidade porque, com a inovação tecnológica, estamos cada vez mais tendo empresas com menos trabalhadores e mais sofisticadas. É importante que a gente represente os que estão trabalhando, mas é importante representar também os que estão na economia informal e que querem entrar para o mercado formal. É preciso criar condições.

Valor: Quais?

Lula: Um passo extraordinário foi a aprovação da Lei Geral da Micro e Pequena Empresa. Com esta lei, que entra em vigor em 1º de julho, o empresário não vai mais pagar 20% sobre folha, mas, em média, algo como 11%. Uma parte do problema já está sendo resolvida sem fazer a reforma trabalhista. Mas quero convencer os dirigentes sindicais de que esse debate é saudável e necessário para o país. Também tem a reforma tributária...

Valor: O sr. não acha impossível fazer reforma tributária quando o governo é o primeiro a dizer que não pode perder receita?

Lula: O governo não só pode perder receita como, até agora, já abriu mão de R$ 30 bilhões em políticas de desoneração. A redução de tributos pode diminuir temporariamente a receita, mas vai aumentar a arrecadação porque aumenta a base de contribuição. Nós diminuímos a taxação de 32 produtos de construção civil e a arrecadação não caiu. Convencer o pessoal da Receita e do Tesouro é sempre mais difícil. Obviamente, não podemos perder receita por perder receita. Quando chegarmos ao tributo certo, vamos ter menos sonegação, menos evasão, e poderemos dotar o país de uma política muito mais competitiva.

Valor: Para reduzir a carga tributária, não seria necessário primeiro reduzir os gastos do governo?

Lula: Nós precisamos só gastar aquilo que se pode gastar. No PAC, fizemos uma coisa extremamente corajosa. Eu me reuni com os líderes de todos os partidos aqui e disse o seguinte: 'Procurem se, em algum momento da História do Brasil alguém assumiu o compromisso de repor a inflação e dar 1,5% de aumento de salário aos funcionários. Se as pessoas entendem que é pouco e não passa, haverá momentos que os trabalhadores não receberão nem a inflação, como já aconteceu durante muito tempo. Se você deixar tudo incerto, dependendo do governo e da greve, num momento você dá 10% e noutro, nada. Aí fica com um grupo de funcionários com os salários totalmente distorcidos. Há setores que há 12 anos não recebiam reajuste.

Valor: Quais?

Lula: Por exemplo, o pessoal que trabalha na Presidência da República, camareira, guarda, ajudante de ordens. Há doze anos não tinham reajuste. É possível alguém viver 12 anos sem reajuste? Ninguém suporta. Fizemos o mesmo em relação ao salário mínimo. Deixamos claro que o salário mínimo vai ter uma política de longo prazo e que não precisa, todo ano, ficar aquele clima nervoso disputando para ver quem é mais autêntico, quem quer dar mais aumento. A única possibilidade de consolidarmos o país como um país sério é determinarmos as regras, todo mundo saber o que vai acontecer e todo mundo jogar aquele jogo. É por isso que lançamos o PAC. Desde o governo Geisel este país não tinha um investimento vigoroso como esse que estamos fazendo.

Valor: E a parte do saneamento básico no PAC?

Lula: Esta é a parte mais difícil.

Valor: Por quê?

Lula: Como o governo não liberou dinheiro para saneamento durante muitos anos, as prefeituras não faziam projetos. Sem projeto, não adianta disponibilizar dinheiro porque não tem nem licitação. Nós, agora, estamos financiando projetos para prefeituras. Na próxima semana, começo a fazer acordos com os governadores do Rio, São Paulo e Minas. Depois, vou para três Estados do Nordeste. Chamamos os governadores e os prefeitos das cidades que serão beneficiadas. Determinamos que vamos atacar primeiro as regiões metropolitanas. Haverá um forte investimento no Complexo do Alemão e em Manguinhos, em saneamento básico e urbanização de favelas. Vamos recuperar as regiões em torno da Represa Billings e de Guarapiranga, áreas de proteção de manancial que estão ocupadas de forma desordenada. Estamos chamando os prefeitos e os governadores para assumir um termo de compromisso, de quando a obra vai começar, quando vai ser feita a licitação. O conselho-gestor vai ter que trabalhar junto com o conselho-gestor do Estado, para acompanharmos de perto a execução das obras. Nosso desafio é garantir que não falte dinheiro. Se fizermos isso, estaremos deixando uma nova safra de gestores que poderão fazer com que o próximo governo tenha muito mais facilidade de executar as coisas do que eu e outros presidentes.

Valor: O senhor não vai anunciar os programas de saneamento para SP, RJ e MG amanhã?

Lula: Suspendi porque tem um ajuste a fazer. Precisamos convencer os governadores de que os Estados que têm maior capacidade de endividamento, que têm empresas sadias, como a Sabesp em São Paulo, em vez de colocarmos mais dinheiro do orçamento geral da União, a gente financia mais (com dinheiro da CEF e do BNDES). O dinheiro do orçamento distribui-se aos Estados com menos capacidade de endividamento.

Valor: Quem está sem capacidade de endividamento?

Lula: No Rio, a Cedae não tem nenhuma possibilidade de tomar empréstimo. Estamos trabalhando com o governador Sérgio Cabral e a direção da Cedae para saber qual é a possibilidade de recuperar a companhia para que ela possa ter capacidade de tomar financiamento.

Valor: O sr. disse que o governo abriu mão de R$ 30 bilhões em desonerações setoriais. O equivalente a uma CPMF. Essa desoneração decorre da decisão do governo de fazer política industrial, em vez de algo mais universal, como reduzir a CPMF ou desonerar a folha?

Lula: Depois de desonerar R$ 30 bilhões, o governo não tem condições de abrir mão de R$ 35 bilhões da CPMF agora. Qualquer um que sentar naquela cadeira ali não vai querer abrir mão da CPMF. Quando fizermos a reforma tributária e ela entrar em vigor, vamos ter resolvido o problema da CPMF e da desoneração. O Estado tem que ter política industrial, precisamos detectar quais os setores em que precisamos investir mais.

Valor: Por exemplo?

Lula: A indústria do aço. Há 20 anos não inauguramos um alto-forno no país e ficamos só olhando a China crescer. Tenho conversado com os empresários para que a gente volte a fazer siderúrgica. Não é possível que o Brasil seja apenas exportador de minério. Segundo a Vale, nós vendemos no mercado interno apenas 10% do nosso minério. O governo tem que ter uma política para incentivar a criação de siderúrgicas. O Brasil será imbatível no setor de papel e celulose. Temos que criar políticas específicas para esse setor. Temos preocupação com o setor têxtil, há milhares de pequenas empresas que queremos que sobrevivam. E não será ajudando a financiar a improdutividade. Temos que ter política de financiamento, de capital de giro, combinada com inovação tecnológica. Não podemos deixar que o setor de calçados acabe porque é impossível competir com a China.