Título: "Financiamento público vai baratear campanha eleitoral"
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Fonte: Valor Econômico, 21/06/2007, Brasil, p. A9

Valor: O senhor acha que o Brasil pode produzir tudo, num mundo globalizado, ou temos que sobreviver naquilo que sabemos e podemos fazer melhor?

Lula: Temos que competir em tudo. Posso até perder a competição, mas tenho que disputar. No setor de calçados o Brasil compete, no setor de móveis o Brasil compete, no têxtil pode competir. Agora, para competir temos que ter regras claras. Por isso, aumentamos a tarifa de importação para 35%, que é o máximo permitido pela OMC, e se não resolver vamos ter que pensar em outras coisas para ajudar. Obviamente, o governo não vai ficar colocando dinheiro para a empresa continuar do mesmo jeito. Ou ela compatibiliza esse financiamento com a inovação tecnológica, ou, aí sim, você

comete o erro de investir em coisas obsoletas.

Valor: Um dos grandes problemas do setor têxtil foi a competição chinesa. O Brasil considerou a China uma economia de mercado e naquele momento houve uma promessa dos chineses de fazer investimentos aqui e até agora não tivemos nada. O governo não se precipitou ao considerar a China uma economia de mercado?

Lula: Eu tomei uma decisão pessoal. Vi muita gente que era contra, mas tomei uma decisão porque não posso ter um gigante como a China trabalhando pelas bordas, pela lateral. O jeito de termos a China sendo mesmo uma economia de mercado é levá-la para a OMC, para que tenha que cumprir as mesmas regras que nós cumprimos. Imagine a China e a Índia soltas no mundo, com 2 bilhões de habitantes, ninguém segura! Não adianta eu ficar xingando os produtos chineses ou ficar reclamando da China. Tenho que trazer a China para a legalidade comercial do mundo. E onde é que é isso? É na OMC. Depois, discutimos investimentos chineses no Brasil, desde que eles não vissem os investimentos aqui apenas como uma estrutura para tirar as matérias-primas que eles precisassem. Ou seja, para produzir aqui dentro. E, aí, há problemas. Eu tenho problemas com 44 milhões de pessoas pobres, Imaginem a China com 1 bilhão! Em algum momento vamos firmar grandes projetos com a China.

Valor: O senhor desistiu da desoneração da folha de pagamentos?

Lula: Não. Tudo isso tem que ser negociado. Vamos ter que negociar na política tributária.

Valor: Não vai demorar muito?

Lula: Não tem importância se as coisas demoram um ano a mais, um ano a menos. Importa é que elas saiam. Num país com as necessidades do Brasil, a gente não pode pensar no curto prazo. Nada pode ser feito de curto prazo, a não ser solucionar a fome do povo.

Valor: As condições objetivas de hoje são suficientes para o crescimento sustentado ou as reformas mencionadas são imprescindíveis?

Lula: São importantes, mas não são imprescindíveis. Há uma margem, e é só ver a rentabilidade das empresas brasileiras para perceber que há uma margem de ganho extraordinária. As empresas brasileiras de grande porte têm competitividade internacional e disputam. Qual é o problema nosso? Quando tomamos a decisão de criar o G-20, eu vinha de Davos, em janeiro de 2003, e comentava com o Celso Amorim (ministro das Relações Exteriores) que a gente precisava mudar a lógica comercial do mundo. A lógica era todos os países pobres e emergentes de olho gordo nas economias americana e européia. Não havíamos maturado o potencial de troca entre nós. Já esgotamos o nosso potencial no Mercosul, na América do Sul, na África, no Oriente Médio, com a China, com a Índia? A minha tese é que, se a gente quiser vender mais, precisa viajar mais. Os empresários brasileiros precisam entrar no avião e sair pelo mundo vendendo seu produto. Fazendo propaganda. O continente africano daqui uns 30 anos deverá estar com 1,3 bilhão de habitantes. Se 30% desses forem consumidores médios, imaginem o potencial que o Brasil tem para entrar nesse mercado. Precisamos começar a viajar agora, a plantar a raiz. Isso explica um pouco o sucesso da balança comercial. É só você analisar as minhas viagens, e você percebe o que é que foi acontecendo. Quando eu dizia que queria um ministro de Indústria e Comércio mascate é porque vender significa cativar, conquistar pessoas.

Valor: Mas às vezes não depende só de conversa...

Lula: Obviamente que não é só de conversa. Se o produto não for de qualidade, se ele for mais caro, não vai vender.

Valor: O Brasil tinha toda uma idéia de integração continental com obras de infra-estrutura. Energia era básico nessa estratégia. O que estamos vendo é a Argentina com problemas de abastecimento de gás, o Chile com problemas com o gás da Bolívia também. Estamos procurando fornecedores alternativos porque não temos certeza desse abastecimento. Essa estratégia de integrar pela infra-estrutura, diante do comportamento da Bolívia e da Venezuela, desapareceu?

Lula: Não. Vai exigir apenas uma conversa a mais. Uma reunião a mais. Continuo com a minha cabeça voltada para a integração da América do Sul. O potencial de construção de hidrelétricas na América do Sul equivale a 564 mil megawatts e isso equivale a aproximadamente 1 trilhão e 400 bilhões de barris de petróleo, com a vantagem de ser uma energia limpa, renovável. O que é preciso lembrar é que há 10, 20 anos os países da América do Sul não conversavam entre si. A Bolívia tinha o Brasil como o imperialista do continente. Todo mundo que é o maior paga o preço da responsabilidade. É preciso construir uma relação de confiança entre os Estados, não entre pessoas. Estabelecer políticas que possam mostrar que o Brasil, por ser a maior economia, tem que ser mais generoso com os outros.

Valor: Mas o gás da Bolívia não é um elemento decisivo?

Lula: O gás é um elemento decisivo para os países que não têm possibilidade de ter outra matriz energética. É imprescindível quando o preço do gás é mais barato que outro tipo de energia e deixa de ser quando o preço se torna caro. Um país do tamanho do Brasil, que quer crescer de forma sustentável durante muitos anos, que quer conquistar um espaço na economia mundial como país rico, não pode ficar dependente de uma única fonte fornecedora de energia. O gás é interessante economicamente, não há nenhum problema de fornecimento do contrato que temos com a Bolívia, dos 30 milhões de BTUs, mas eu quero é me certificar, primeiro, que a Petrobras está investindo na prospecção para ver se encontra gás e estamos procurando outros parceiros para termos opções e não ficarmos no sufoco. O Brasil não pode ficar no sufoco dependendo de ninguém. É assim que trabalhamos. E vamos continuar comprando gás da Bolívia.

Valor: Há uma crise no sistema político brasileiro. Tanto é assim que o próprio Congresso tenta articular uma reforma. Em que medida essa crise afeta a administração ou interfere na execução de programas do governo?

Lula: Não é por isso que é preciso fazer uma reforma política. Precisa para o bem da sociedade brasileira, dos partidos políticos e do próprio Congresso Nacional. O Congresso tem colaborado com o governo. Vou dar um exemplo: as medidas do PAC que mandamos foram aprovadas em tempo recorde. Quero a reforma política e acho que ela tem que ser feita pelo Congresso. Não sairá nem do Poder Executivo nem da universidade.

Valor: E vai sair?

Lula: Vai. O que é importante é que a gente não pense em reforma política apenas em época de crise. O que é importante é que a gente tenha na reforma política uma profissão de fé, de que ela será benéfica para todo mundo. Para as pessoas conhecerem melhor o perfil ideológico de cada partido político, que você possa votar em lista, mas ao mesmo tempo em pessoas individualmente, que você tenha o financiamento público de campanha. É uma ilusão quando alguém pensa que o financiamento público vai onerar os cofres públicos. Vai é baratear.

Valor: Por quê?

Lula: Porque você determina as regras do jogo, da quantia em dinheiro para cada partido político disputar as eleições, e aí pode ficar certo de que, numa disputa interna, cada um vai controlar a sua parte ali porque não vai querer que um tenha tudo e o outro não tenha nada. Será uma coisa moralizadora.

Valor: Se o financiamento público não vai onerar os cofres públicos, o sistema atual onera?

Lula: Vai ficar muito mais visível para a sociedade. Hoje, o controle de uma campanha é muito complicado. A minha tese é que o Congresso precisa compreender a necessidade de fazer a reforma política para o bem do próprio Congresso. Muitas vezes a gente reclama do Congresso, fala, fala, mas eu peço a Deus que ele continue funcionando 24 horas por dia porque o Brasil, sem ele, é menos democrático.

Valor: O MST ampliou sua plataforma. Não basta mais só a reforma agrária. Vai combater também a política econômica, que acredita favorecer o agronegócio. O governo deu um nó tático no MST e o movimento perdeu sua bandeira?

Lula: Esse não é um problema dos sem-terra. Esse é um problema de todo movimento social. Quando você tem um governo que atende às reivindicações... Vou contar uma história de 15 anos atrás. Quando foi implantado o real, eu já não era mais dirigente sindical, era presidente do PT, e sempre tive uma relação extraordinária com os dirigentes sindicais. Em vários debates eu dizia para os trabalhadores: vocês precisam adentrar ao mundo da política e diminuir o mundo econômico porque, sem inflação, a bandeira diminui muito. Qual é o discurso que tem o dirigente sindical na porta de fábrica?

Valor: O senhor acha que ficaram sem bandeira?

Lula: Deus queira que ele sempre tenha uma bandeira porque movimento sem bandeira fica pior. Então, o que aconteceu? Quando a gente ia para a porta de fábrica reivindicar reajuste de 80%, 90%, 120% e conseguia 60% já era uma vitória. Hoje, se a inflação está em 3% e você tem 4% de reajuste, teve 1% de aumento real, o que é uma conquista extraordinária em qualquer país do mundo. O movimento sindical tem que ser mais criativo. Por isso, o movimento sindical está vindo mais ao Congresso discutir Orçamento. Tem que fazer pauta de reivindicação para o presidente da República, para o Congresso, para os governadores, para os prefeitos, porque quando um dirigente sindical conquista um aumento de salário, ele vai se preocupar com o preço de ônibus. Senão, o preço do ônibus vai comer o salário que ele conquistou. Então, tem que abrir a cabeça dos dirigentes sindicais, que hoje são muito mais bem preparados do que no meu tempo. Aquela meninada toda tem curso universitário, estuda inovação tecnológica, reestruturação produtiva como ninguém.

Valor: A elite sindical que a gente vê hoje, sem nenhum preconceito, não é a questão de usar ternos sofisticados ou carros com motoristas, mas essa elite sindical hoje não está atrapalhando a reforma trabalhista, não se tornou muito pelega, defendendo os próprios interesses? Ela não enriqueceu?

Lula: Como presidente não posso falar o que eu falava como dirigente sindical. Mas eu vou dizer uma coisa: no meu sindicato eu instituí, em 1978, que ninguém poderia ter mais que dois mandatos. Em São Bernardo alguém não será diretor do sindicato se não for eleito na sua seção da fábrica. Ele pode estar há cinco anos fora, mas, se ele quiser ser eleito, tem que ser votado na seção dele. Se não for votado, acabou a carreira sindical. Eu gostaria que fosse assim em todo o movimento sindical. Em 78 eu convoquei uma assembléia e decidi: não tem mais que dois mandatos. É um para aprender, outro para executar e outro para cair fora e cuidar da vida. Não é assim que todo mundo pensa. Às vezes fico triste porque há dirigente que já estava quando eu entrei. Eu já saí, virei presidente da República, já perdi três eleições e ele continua lá. É um problema da categoria que vai ter que mudar.

Valor: Presidente, estamos aqui há uma hora e o senhor não falou sobre taxa de câmbio. Essa é uma questão que não o preocupa?

Lula: É muito difícil determinar qual o câmbio bom. Para quem exporta, R$ 4 seria ótimo. Para quem importa, se fosse R$ 1 seria ótimo. O dado concreto é que vamos manter o câmbio flutuante e ele flutua, vai para baixo e para cima. Obviamente, precisamos estar preocupados com o câmbio, mas não vamos fazer nenhuma loucura. Vamos tentar fazer os acertos necessários e que forem possíveis para mantê-lo nesse nível ou um pouquinho a mais. Por isso compramos muitos dólares.

Valor: Hoje as reservas cambiais estão em quanto?

Lula: US$ 140 bilhões (ontem, o Banco Central informou que estavam em US$ 143,3 bilhões na terça-feira).

Valor: Vai chegar a US$ 200 bilhões?

Lula: Vamos chegar lá.

Valor: Até o fim do ano?

Lula: Vocês sabem que eu fico orgulhoso. Em 2004, quando fui à Índia, eles haviam atingido US$ 100 bilhões de reservas. Eu saí de lá com inveja e discuti com o Palocci: "No dia em que o Brasil tiver US$ 100 bilhões de reservas, vamos estar bem pomposos mesmo". Já estamos com US$ 140 bilhões e vamos chegar a US$ 200 bilhões.

Valor: E mesmo essa acumulação não segura a taxa...

Lula: De vez em quando chamo a atenção dos economistas para eles não fazerem avaliações equivocadas. Não existe apenas uma razão. No dia em que o presidente do Banco Central americano ameaçou aumentar zero não sei o que os juros, o câmbio no Brasil subiu. Por quê? Porque hoje, na verdade, o real está se valorizando, mas o problema é que o dólar está se desvalorizando em relação a todas as moedas. E se nosso querido governo americano não cuidar do déficit público deles, vamos ter esse problema. Nós vamos tratar de todas as medidas necessárias para, de um lado, ajustarmos os setores mais prejudicados, vamos continuar comprando dólar e vamos aumentar as nossas importações. Não tem milagre. O mercado é que vai se ajustar.

Valor: A Polícia Federal tem sido questionada por vazamentos de investigações...

Lula: Não por mim. Eu não tenho questionado. Acho que é uma polícia extremamente eficaz e necessária ao país. Como acho que o Ministério Público, do qual muitas vezes as pessoas se queixam, também é importante. O que tenho dito é que toda vez que uma instituição ou uma pessoa é alçada a um posto de muito poder, aumenta a responsabilidade. Quanto mais poder eu tiver, mais seriedade tenho que ter. Não posso confundir investigação com devassa, onde antes de ser concluída a pessoa já foi submetida à execração pelos meios de comunicação. Ora, se são execradas pela mídia é porque alguém vazou. A única coisa que exijo é seriedade.

Valor: Faltou seriedade no caso do seu irmão Vavá?

Lula: Eu não discuto o caso do meu irmão. Até porque eu, como presidente, trato meu irmão como os 190 milhões de habitantes. É uma cultura que eu tenho. Meu irmão frei Chico era do Partido Comunista Brasileiro e eu estava fundando o PT. Nós divergíamos muito, mas eu dizia: "Chico, você entrou na minha casa, você é meu irmão e não o político. Saiu para fora você faça o que você quiser". O tratamento a ser dado a todos é o da seriedade. Se tiver erro, tem que ser investigado. Se tiver que punir, que puna. Agora, tem muitos casos em que a gente vê as pessoas serem devassadas e, depois, não acontece nada porque não tem prova. A vida particular das pessoas é inviolável. Isso está na Constituição. Portanto, é preciso tomar cuidado.