Título: O que fazer com os dólares?
Autor: Málaga, Tomás
Fonte: Valor Econômico, 21/06/2007, Opinião, p. A20

É incrível como as idéias mais disparatadas aparecem frente a um problema simples como o que fazer com a abundância de dólares na economia. Se você ganha na loteria pode fazer duas coisas: consumir todo o dinheiro agora gastando em carros de luxo, vinho francês, relógios suíços, quinquilharias chinesas e viagens pelo Caribe; ou investir, para garantir uma vida melhor para vocês mesmos e para os filhos e netos. Não é que devamos condenar moralmente a primeira atitude, mas não é como, em geral, as pessoas bem-sucedidas agem. Isto tem sido testado internacionalmente, pelo menos desde que Keynes propôs uma função consumo dependente apenas da renda corrente, desmentida pelos dados.

As idéias propostas, a maior parte delas, violam esta simples condição de sucesso na vida. Vejam por que: 1) Taxar as exportações para diminuir o afluxo de dólares equivale a recusar a loteria. Como o governo irá se apropriar de uma parte maior do que será exportado, isto desestimulará as exportações, diminuindo seu dinamismo e deixando de aproveitar esta fase boa da economia. Assim, irá parar de acumular recursos para aumentar os investimentos. Perde-se, então, a chance que a economia internacional nos esta dando;

2) Controle de capitais, equivale a dizer "não quero toda a loteria". Não deixar que os investidores apliquem aqui seu dinheiro, ou criar dificuldades para eles, equivale a abrir mão de melhores condições futuras. A obstrução não permite, por exemplo, que os juros internos caiam mais rapidamente, levando a um aumento do investimento;

3) Liberar as importações temporariamente. Isto é similar à primeira fase do Plano Real, "pegue os dólares e vá passear pelo mundo afora". Uma queda temporária das tarifas de importação certamente seria efetiva para conter a apreciação do real, porém por um motivo dos mais perversos. Esta situação levaria a uma corrida às importações durante o período de tarifas baixas, forçando as pessoas a consumirem mais do que elas querem para aproveitar a oportunidade. É como servir caviar para alguém que já está satisfeito com a feijoada que acabou de comer: certamente ele vai aceitar a iguaria, pois é uma rara oportunidade, porém teria sido muito mais feliz em degustá-lo em outra circunstância. Esta é uma política inconsistente e ineficiente e poderia se tirar muito mais proveito com o mesmo gasto de recursos.

O que fazer então? 1) Parar de emitir dívida externa e, na medida do possível, recomprar todo o estoque que é "sub-investment-grade". Os críticos vão argumentar que assim o risco vai cair, o real vai ficar ainda mais forte. Ótimo, pois é disso se trata: quanto menor o risco menor, será a taxa de juros estrutural, o que estancará o custo financeiro da dívida pública e diminuirá a restrição financeira ao investimento privado.

-------------------------------------------------------------------------------- Não se sabe o que fazer com os dólares porque não existe segurança jurídica para o investidor privado em serviços públicos --------------------------------------------------------------------------------

2) No possível devemos ser um pouco mais agressivos na redução da taxa de juros interna. A situação ficou muito melhor do que todos imaginavam. Se é uma bolha a volta não será tão custosa, pois estamos em um ambiente com taxa de juros estrutural muito mais baixa.

3) Constituir um fundo de investimento de recursos públicos que livrem a economia da maldição dos recursos naturais. Isto é, um fundo que invista em setores que têm pouca correlação com os preços das matérias-primas, como tecnologia e serviços. Sim, papéis privados, em países com boa legislação e empresas "investment grade". A administração deve ser concedida a profissionais com renome internacional, mediante concorrência para ter a melhor e mais transparente administração possível destes recursos. Assim se pára de financiar a baixo retorno o tesouro americano e se tem um colchão amortecedor para os maus dias, que eventualmente virão. Alguns críticos se perguntarão qual é a vantagem do governo se endividar a 12% a.a. para comprar ativos que vão render, por exemplo, 8%, que é mais do que as reservas internacionais, porém menos do que os juros internos. Isto é verdade: ainda que seja um retorno melhor do que o governo recebe hoje, o fundo não tem como reverter esta situação. Porém, não se trata apenas de aumentar o rendimento destes investimentos, mas também de melhorar as propriedades contra cíclicas dos ativos do tesouro.

4) Reduzir as tarifas de importação consistentemente, sinalizando que esta é uma política de longo prazo que não privilegiará nenhum setor específico, mas apenas visa reduzir o custo das importações para todos terem acesso aos melhores produtos e bens de capital disponíveis no mundo. Assim, todos podem melhorar suas condições produtivas sem privilégios e se preparar para um ambiente mais competitivo. Muito diferente da proposta (3) acima e muito diferente das iniciativas que o governo tem tomado, elevando tarifas e concedendo vantagens tributárias setoriais.

5) Como diz meu colega no Itaú, Joel Bogdanski, devemos estar preparados para este ciclo de bonança. Dá para imaginar o superávit em conta corrente sendo dirigido para importar radares de última geração, supercomputadores para o controle de vôos e treinar os controladores nos melhores centros internacionais de aeronáutica? Já você pensou que poderíamos estar importando trens super-rápidos para ter um sistema de transporte multimodal eficiente? Da para imaginar os portos todos renovados com rebocadores e guindastes modernos? Não sou especialista em nenhuma dessas áreas, só são exemplos que chamam a atenção para alguns dos problemas mais urgentes. Tem muitas coisas que podem ser feitas com esses dólares. Por que não as estamos fazendo? Porque não houve concessões ao setor privado, apesar da redução do investimento público frente ao aumento desenfreado dos gastos. Não existe segurança jurídica para nenhum investidor privado em serviços públicos, é por isto que não sabemos o que fazer com os dólares. Porém, o pior que o governo pode fazer neste momento é recusar os dólares. Acho que é óbvio, não é?

Tomás Málaga é economista-chefe do Banco Itaú S.A., Ph. D. em Economia pela Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA).