Título: Argentina deslancha a reestruturação da dívida
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 14/01/2005, Opinião, p. A8

A Argentina tenta a partir de hoje conseguir duas proezas - fazer a maior reestruturação de dívidas da história com a maior taxa de desconto já oferecida por um país que não se envolveu em guerras. Até 25 de fevereiro, milhares de credores espalhados pelo mundo terão de optar se aceitam trocar 152 tipos de bônus em moratória por um menu de três títulos. O deságio para os papéis, segundo o governo argentino, oscila entre 63% e 68%, com prazo de pagamento de até 42 anos. Kirchner jogou duro com os credores e deixou claro que esta é a oferta definitiva. Há forte oposição a ela e é impossível saber se a proposta porá fim à moratória. A taxa de adesão criará um disputa política importante. O ministro da Economia, Roberto Lavagna, considera para seus cálculos a dívida total do país, da qual 43,4%, a maior parte com organismos multilaterais, vem sendo paga regularmente. A parcela restante, de 56,5%, é a que está efetivamente em default. Se metade dos detentores de bônus aceitarem a oferta de reestruturação, isto é, 23,3%, a Argentina teria regularizado pelo menos dois terços de seus débitos - isto é 43,4% mais 23,3%. Para o governo de Kirchner, isto é mais do que o suficiente para provar que negociaram de boa fé e que regularizaram sua situação. O FMI tende a não concordar com estas contas. A reestruturação nos termos argentinos, dependendo do grau de apoio - se maior ou menor que 70% - tornará pó algo entre US$ 38 bilhões e US$ 41,8 bilhões, um forte motivo para que os credores considerem que o nível de adesão relevante é o da dívida que não está sendo paga, e não da dívida total. As apostas do mercado estão divididas entre aqueles que acreditam que a rejeição, se intensa, poderá ainda fazer o governo argentino melhorar a oferta, e aqueles que crêem que, diante da perspectiva de uma incerta e interminável batalha judicial, é melhor aceitar o que está sendo oferecido. Na segunda hipótese, o presidente Néstor Kirchner poderá saborear por algum tempo uma vitória inédita, a de ter, sozinho, imposto seus termos aos mercados. Os mais sacrificados pela debacle do país foram os próprios argentinos, detentores de 38,4% do total do calote, seguidos pelos italianos, com 15,6%. Por isso, a proposta de Lavagna procura dar aos 10 milhões de filiados aos fundos de pensão nacionais, que entrarão na fila dos perdedores, menor desvantagem. Para eles foi criado o bônus quase par, com 30,1% de deságio e rendimento fixo de 3,31%. Os fundos detinham US$ 13,5 bilhões em títulos e US$ 11,3 bilhões entraram nesta troca. O restante será convertido em bônus desconto, com 66,3% de deságio e juros de 8,28%. Entretanto, para garantir a solvência imediata dos fundos e o pagamento dos que estão se aposentando agora, os bônus poderão ser contabilizados por valores 50% superiores aos do mercado. Se aceita a oferta pelos credores, a dívida argentina cairá para 80% do Produto Interno Bruto, ante 150% do PIB antes da moratória. Dificilmente a Argentina terá condições de pagar algo além do que ofereceu. O peso da dívida reestruturada está longe de ser suave e o país terá, nas estimativas de alguns analistas, de garantir um superávit anual de 4% do PIB para saldar todos os débitos, os correntes e os renegociados. Para isso, é vital que sua economia cresça a uma boa velocidade, o que não está assegurado no médio prazo. Os ruídos políticos, especialmente os que vem da Casa Rosada, podem turvar o ambiente. O país necessita ampliar a taxa de investimentos, já que aproxima-se o momento em que a capacidade ociosa, criada por uma recessão sem precedentes, se esgotará. As medidas de Kirchner ampliaram a renda interna e o BC adotou uma política expansionista, mas a retomada da inflação pode estar logo à frente se o BC não puxar o freio na hora em que a indústria estiver produzindo a plena carga, avalia Miguel Broda, respeitado consultor argentino. Kirchner continua às turras com o FMI, com o qual tem um acordo em suspenso e gostaria de não precisar renová-lo. Não é uma boa jogada, já que tem no FMI o dinheiro mais barato que a Argentina pode obter. Sem o aval do FMI, dificilmente os investidores e o crédito externo retornarão à Argentina. Lavagna disse que "ninguém deve pagar o preço prévio que nós pagamos" pela reestruturação, ao abordar a questão de se a forma com que ela foi feita serviria de exemplo para outras nações. "Não serve de exemplo nem para nós mesmos no futuro", concluiu. Só este ano a Argentina voltará ao nível econômico que tinha em 1998. Melhor do que impor uma reestruturação é ter uma política macroeconômica sadia que evite moratórias.