Título: O crime organizado e as varas especializadas
Autor: Feldens, Luciano e Estellita, Heloisa
Fonte: Valor Econômico, 26/12/2006, Legislação & Tributos, p. E2

O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) editou, em 30 de maio de 2006, a Recomendação nº 3, dirigida ao Conselho da Justiça Federal (CJF) e aos Tribunais Regionais Federais (TRFs), por meio da qual recomendou a especialização de varas federais "para processar e julgar delitos praticados por organizações criminosas". O Conselho da Justiça Federal fez publicar a Resolução nº 517, de 30 de junho de 2006, mediante a qual possibilitou aos TRFs a especialização de varas federais criminais para processar e julgar "os crimes praticados por organizações criminosas, independentemente do caráter transnacional ou não das infrações".

Em atenção a elas, o TRF da 4ª Região emitiu a Resolução nº 42, de 19 de julho de 2006, fazendo incluir na competência das já existentes varas federais criminais especializadas para processar e julgar os crimes contra o sistema financeiro nacional e de lavagem de dinheiro, "os crimes praticados por organizações criminosas, independentemente do caráter transnacional das infrações".

A implementação dessa especialização no âmbito da 4ª região federal tirou do interior a competência para processar e julgar todos os casos envolvendo "organizações criminosas" e passou-a para as capitais, com isso criando diversas ordens de problemas.

Sob o prisma da sua própria eficácia, ao "artificializar" o juízo natural, a resolução afastou-o do local em que efetivamente praticado o fato, onde, em regra, residem as vítimas e as testemunhas, as quais, sabemos bem, não se obrigam a um semelhante deslocamento se chamadas a prestarem depoimento. Na prática, isso significa que a produção das provas nesses processos será feita mediante cartas precatórias, cumpridas por um juiz com conhecimento superficial do fato e de suas circunstâncias, empobrecendo, assim, a prova.

Mas o grande e mais grave problema está relacionado ao critério escolhido para a especialização das varas: os crimes praticados por organização criminosa. O instrumento normativo a que fazem referência tanto a recomendação do CNJ como as respectivas resoluções do CJF e do TRF da 4ª Região é a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, de 15 de novembro de 2000 (Convenção de Palermo), aprovada pelo Decreto Legislativo nº 231, de 29 de maio de 2003, e promulgada pelo Decreto nº 5.015, de 12 de março de 2004, segundo a qual grupo criminoso organizado é aquele "grupo estruturado de três ou mais pessoas, existente há algum tempo e atuando concertadamente com o propósito de cometer uma ou mais infrações graves ou enunciadas na presente convenção, com a intenção de obter, direta ou indiretamente, um benefício econômico ou outro benefício material".

Parece evidente que o conceito, isoladamente considerado, não elucida, com a desejável precisão, seu próprio objeto; não se basta em si. Tanto é assim que a própria convenção, ao longo de seu texto, procura explicitar elementos do conceito, mas o faz, desafortunadamente, utilizando-se da técnica da conceituação negativa, o que faz gerar maiores perplexidades. É o que acontece com a tentativa de explicitar o elemento organização: segundo a convenção, estaremos diante de um "grupo criminoso estruturado" mesmo quando este grupo "não disponha de uma estrutura elaborada".

O mesmo problema que já fora detectado no âmbito da Lei nº 9.034, de 1995 (meios de prova e investigação nos crimes praticados por organizações criminosas), e da Lei nº 9.613, de 1998 (crime antecedente da lavagem de dinheiro) agora se estende, com todo o vigor, ao campo processual.

-------------------------------------------------------------------------------- A equiparação entre organização criminosa e quadrilha levará à paralisação das varas de lavagem de dinheiro --------------------------------------------------------------------------------

Essa imprecisão pode conduzir - e já está conduzindo - a uma indevida equiparação entre organização criminosa e o delito de quadrilha ou bando, previsto no artigo 288 do Código Penal, ou de associação para o tráfico de entorpecentes, previsto no artigo 35 da Lei nº 11.343, de 2006, e se traduz em graves problemas jurídicos com inequívoca repercussão prática.

Aqueles que atuam na linha de frente, sejam do Ministério Público, sejam juízes ou advogados, sabem ao que nos referimos: uma longa e custosa discussão acerca da competência dessas varas especializadas baseada na existência, ou não, no caso concreto, de uma organização criminosa. Uma discussão de tal porte, havendo de ser realizada em exíguo prazo, à vista de investigados presos e dezenas de volumes de investigação, não é propriamente uma tarefa digestiva. Pense-se, ainda, na liberação dos membros de associação ou da organização fundada exclusivamente no excesso de prazo da prisão em virtude da discussão acerca do conceito e da competência.

Sabe-se que nem sempre existe um acompanhamento da investigação por parte das autoridades ministerial e judicial que, ao final, haverão de atuar no caso. Pois bem, neste curto período de vigência da Resolução nº 42 do TRF da 4ª Região, já ocorreu situação na qual o processo teve sua competência deslocada do interior para a capital quando já concluído o inquérito com suspeitos presos, porque o Ministério Público e o juiz concluíram pela existência, no caso, de uma organização criminosa. Esse entendimento não foi compartilhado pelo Ministério Público e pelo juízo especializados, gerando uma nova declinação de competência seguida de um conflito negativo de competência, discussão que, neste ou em outros casos, certamente desaguará no Superior Tribunal de Justiça (STJ) e, depois, no Supremo Tribunal Federal (STF).

A equiparação entre organização criminosa e crime de quadrilha ou bando, nos dias correntes largamente utilizada nos crimes praticados no contexto empresarial, levará ao entupimento e à paralisação das varas federais especializadas para processar e julgar os crimes contra o sistema financeiro nacional e de lavagem de dinheiro. Sim, porque agora, a prevalecer essa equiparação conceitual, qualquer crime tributário, contra o meio ambiente, contra as relações de consumo ou contra o consumidor, desde que praticado por quadrilha ou bando, será imediatamente remetido a tais varas. Isto devido à banalização do conceito de organização criminosa, hoje comumente realizada sempre que sejam quatro ou mais os acusados - circunstância corriqueira nos crimes praticados no contexto empresarial - e o sejam pela prática de mais de um crime.

Para que não se dissipe em mera retórica institucional, o combate efetivo à criminalidade organizada exige, antes da realização de experimentos investidos de acentuado caráter simbólico ("efeito Marcola"), a adoção de medidas comprovadamente eficazes.

Luciano Feldens e Heloisa Estellita são, respectivamente, doutor em direito constitucional pela Universidad de Valladolid e procurador da República no Rio Grande do Sul; e doutora em direito penal pela Universidade de São Paulo (USP) e advogada em São Paulo

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