Título: Estratégias e desafios do comércio exterior (III)
Autor: Alexandre de Freitas Barbosa e Ricardo Sennes
Fonte: Valor Econômico, 14/01/2005, Opinião, p. A8

A visita do presidente chinês, Hu Jintao, ao Brasil, em novembro de 2004, esteve coberta de expectativas, tanto da parte do governo brasileiro, como dos principais analistas econômicos e da mídia nacional. Isso se justifica pelo crescente papel exercido pela China na economia internacional, mas também pela importância geopolítica de se estreitar os laços entre países do Sul do planeta. O outro lado dessa expectativa um tanto eufórica pode ser expresso no sentimento difuso, após a partida da delegação chinesa, de que o Brasil sofrera um revés nas negociações com o parceiro asiático. Em síntese, eles teriam "levado" o reconhecimento de que são uma plena economia de mercado - atenuando as possibilidades de serem alvo de processos antidumping -- enquanto nós conseguimos o compromisso de facilitação do ingresso de carne bovina, de frango e de outros produtos básicos no mercado chinês, via redução das barreiras sanitárias, e o suposto aval daquele país para uma vaga brasileira no reformado Conselho de Segurança da ONU. Tudo parece indicar, entretanto, que a relação Brasil-China - para além de posturas excessivamente otimistas ou críticas - exige análise ponderada, tanto pelo aspecto estratégico, como em virtude dos desafios vindouros. Começando pela esfera comercial, pode-se dizer que de 1999 a 2004, mudou de forma expressiva o patamar de intercâmbio entre o Brasil e a China. A corrente de comércio entre os dois países cresceu 500% no período, contra uma média de 64% para o comércio total do Brasil. Paralelamente, o comércio bilateral se tornou francamente superavitário para o nosso país, saltando de déficit pouco inferior a US$ 200 milhões, em 1999, para superávit crescente a partir de 2001, o qual superou a casa dos US$ 2 bilhões no ano de 2003, "perdendo" apenas para o saldo obtido com os EUA e a União Européia. Mas o que mudou no ano de 2004? Pode-se dizer que a o mercado chinês continua cumprindo papel relevante para o Brasil, ainda que nosso superávit comercial tenha decrescido para US$ 1,730 bilhão - como resultado do aumento anual das importações brasileiras de 73%, contra elevação de 20% das exportações. O saldo comercial do país com a China, ano passado, mostra-se já inferior ao obtido com México e a Argentina (quem diria!). Por trás dessa leve inflexão no sentido do comércio bilateral, escondem-se elementos de natureza estrutural, que provavelmente passarão a pautar os fluxos de comércio entre os dois países nos próximos anos. Em síntese, a relação comercial Brasil-China parece estar ingressando numa nova fase. Uma análise setorial dos fluxos de comércio entre Brasil e China nos fornece alguns elementos importantes para desvendar o segredo das recentes transformações.

Se, por exemplo, de 1999 a 2003, houve melhora do saldo comercial brasileiro com a China de mais de US$ 2,5 bilhões; comprova-se também que montante equivalente a 116% desse total se deveu à contribuição de uma lista de poucos produtos - complexo soja, madeira, papel e celulose, minério de ferro e aço - cujos preços são altamente voláteis, tendo se favorecido da tendência altista verificada nos dois últimos anos. O saldo comercial desses setores elevou-se no período analisado em mais de 600%. Entretanto, ao se comparar o período de janeiro a outubro de 2004 com o mesmo período de 2003, a expansão recua para 18,7%. Ou seja, estamos provavelmente presenciando - mantidas as atuais tendências do comércio bilateral - uma mudança de patamar nas relações comerciais, que exigirão dos negociadores e empresários brasileiros um misto de cautela com visão de longo prazo, já que a manutenção de fluxos comerciais elevados e do saldo positivo brasileiro dependerá da diversificação da nossa pauta de exportações e da gestação de acordos setoriais e parcerias produtivas.

É preciso uma estratégia mais arrojada das empresas, mas também maior ousadia do governo nas negociações

Isso fica claro quando se analisa o desempenho dos setores superavitários da China com o Brasil. No cômputo geral, a tendência é quase inversa à verificada pelos setores superavitários do Brasil. O crescimento do saldo comercial desses setores de 1999 a 2003 foi menor (142%), com aceleração no período recente: de janeiro a outubro de 2004, esses setores aumentaram o saldo com o Brasil em 86%, na comparação com o mesmo período do ano anterior. Esses setores superavitários chineses podem ser divididos em dois grandes grupos: de baixo e alto valor agregado. No primeiro grupo, encontram-se predominantemente brinquedos, calçados e vestuário, cujo saldo comercial, tradicionalmente negativo para o Brasil, se manteve estagnado ou até mesmo se reduziu entre 1999 e 2003, seja por conta da mudança cambial, como de medidas de defesa da produção interna. Por exemplo, quando se toma os anos de 1998 e 2003 como referência, as importações brasileiras da China caíram 44% no segmento do vestuário, 20% no de calçados, e 55% no caso dos brinquedos. Ainda assim, os níveis de importação voltaram a se elevar no ano passado, em virtude da política cambial brasileira e da ativação da demanda interna, exigindo atenção da parte das autoridades governamentais. No segundo grupo, encontram-se os produtos químicos orgânicos, as fibras sintéticas, as máquinas e aparelhos elétricos e eletrônicos e os instrumentos e aparelhos de fotografia. Aqui, o incremento do déficit comercial brasileiro com a China tem sido expressivo: no complexo eletroeletrônico, por exemplo, o déficit cresceu 186%, entre 1999 e 2003, e mais 106% nos dez primeiros meses de 2004, se comparado ao mesmo período do ano anterior, superando a casa de US$ 1 bilhão. Obviamente, as relações econômicas entre os dois países devem também ser analisadas do ponto de vista dos investimentos - especialmente quando se leva em conta que a China já é hoje importante investidor mundial, especialmente na América Latina. Porém, não se pode esquecer que os preços de intercâmbio num cenário em que se troca soja por chips de computador tendem progressivamente a se mostrar negativos. Em síntese, não é que o governo brasileiro tenha sido ingênuo nas negociações com a China, como foi ventilado por vários analistas. Talvez tenha faltado a compreensão de que o país pode instaurar um padrão de relacionamento comercial com o parceiro asiático que não reproduza as assimetrias Norte-Sul, e que não esteja apenas calcado no sucesso de alguns poucos produtos básicos. A título de ilustração, vale ressaltar o desempenho positivo recente das exportações da cadeia automotiva para a China, especialmente do segmento de autopeças. Se não podemos concorrer nos segmentos de bens de consumo não-duráveis industriais e nos duráveis eletrônicos, existe amplo leque de bens intermediários, matérias-primas industriais e máquinas e componentes, inclusive de alto valor agregado, que o país pode colocar no mercado chinês, além do imenso mercado de serviços a ser aproveitado, especialmente no ramo da construção civil. Para tanto, torna-se imprescindível uma estratégia produtiva e comercial mais arrojada por parte das empresas brasileiras, mas também maior ousadia e pressão do governo nas negociações comerciais.