Título: Lula perde a ousadia
Autor: Safatle, Claudia
Fonte: Valor Econômico, 22/12/2006, Brasil, p. A2

Fechar as contas fiscais de 2007 tornou-se uma tarefa prodigiosa. Não que tenha sido trivial administrar as contas públicas e produzir superávits primários de 1999 para cá, mas o nível de despesas já contratadas para o próximo ano e a facilidade com que o presidente Lula assume novos compromissos de gastos - desautorizando totalmente seus ministros da Fazenda e do Planejamento - tornam 2007 um grande desafio para a gerência do caixa da União.

Em poucas horas, na quarta-feira, Lula avalizou um aumento do salário mínimo de R$ 350,00 para R$ 380,00 - reajuste de 5,3% reais, considerando um INPC de 3,1% -- e decidiu pelo reajuste da tabela do Imposto de Renda da Pessoa Física de 4,5% para os próximos quatro anos, contra a proposta do Ministério da Fazenda de aplicar um reajuste menor, de 3%.

Essas duas decisões, que deixam enormes dúvidas sobre quais são, de fato, os compromissos fiscais do governo que assume dia 1º de janeiro, foram tomadas entre a madrugada de terça e todo o dia de quarta-feira, juntamente com uma política de reajuste mais permanente para o salário mínimo, num sistema de reindexação. Esta política, conforme determinação do presidente assumida durante negociação com as centrais sindicais, sem a presença de representantes da Fazenda e do Planejamento, obedecerá, nos próximos quatro anos, à seguinte fórmula: a cada ano, o mínimo será corrigido pela variação do INPC do ano anterior (que mede a inflação até seis salários mínimos), mais um aumento real equivalente ao crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) de dois anos antes.

A proposta mais generosa que a área econômica havia feito era INPC mais 80% do PIB real, embora considerasse melhor a indexação ao PIB per capita. E, para o salário a partir de abril de 2007, começou com R$ 375,00 no projeto de lei orçamentária, mas com a redução tanto das projeções de inflação quanto de PIB para este ano, o ministro Guido Mantega recuou para R$ 367,00.

Fazenda e Seplan foram perdendo todos os embates no decorrer da discussão do programa econômico do segundo governo de Lula, acumulando derrotas e contas a pagar para os próximos exercícios. As decisões de quarta-feira podem ser justas, mas não são inofensivas. Elas significam despesas adicionais com a Previdência Social de cerca de R$ 1 bilhão por ano, mais uns R$ 200 milhões de renúncia de receita com o IR. E esta foi uma das razões, senão a principal, para o Palácio do Planalto adiar toda a divulgação do programa de metas que Lula havia marcado para a manhã da quinta-feira. Contas terão que ser refeitas para abrigar as novas despesas e, embora se negue em público, os comentários de fontes qualificadas da área econômica é de que o leque de desonerações de impostos ou dos investimentos terá que ser menor para compensar os novos gastos.

-------------------------------------------------------------------------------- Está mais difícil fechar as contas de 2007 --------------------------------------------------------------------------------

Há, na questão do reajuste do salário mínimo, uma pequena "manha", que pode ter passado despercebida pelos sindicalistas, mas fez a alegria de uns poucos técnicos do governo: ao indexar o aumento real à variação do PIB de dois anos anteriores, isso significa que o salário mínimo de 2008 será corrigido pelo PIB de 2006 que, como se sabe, será bem modesto.

Na avaliação de economistas do governo, há um outro aspecto nessa decisão que é melhor do que simplesmente ter deixado como estava: nos próximos quatro anos não se coloca o debate sobre o mínimo na mesa de negociação. Está definido e, pelo menos, lembram essas fontes, a regra é melhor do que a que Lula e o ministro do Trabalho, Luiz Marinho, vinham praticando. Neste ano, por exemplo, o presidente deu aumento de 12% real para o salário mínimo e ajudou a elevar o déficit da Previdência Social para mais de R$ 40 bilhões.

Mas as alegrias concedidas no Natal serão cobradas em janeiro, quando o governo terá que fazer o decreto de contingenciamento do Orçamento para 2007. "Vamos ter que fazer um contingenciamento forte e continuar a controlar o gasto na boca do caixa, como, aliás, sempre se faz", observa uma fonte oficial.

Lula, segundo assessores muito próximos, está com todas as suas atenções voltadas para a formação do seu ministério e para a definição dos programas de investimentos que vão "destravar" a economia, permitindo um crescimento de 5% a partir de 2007. Ele deverá divulgar, quando for anunciar o pacote de medidas, uma lista de 50 projetos de infra-estrutura que representarão seu plano de metas, ao estilo Juscelino Kubitschek. E está pouco interessado em como a área econômica vai administrar o caixa e produzir superávit primário. Ou, como disse uma fonte que tem contato assíduo com o presidente: " Ele, no genérico, tem fortes convicções sobre a necessidade do superávit fiscal, mas no dia-a-dia tem dificuldades de resistir às pressões."

O comportamento errante da área econômica em relação à contenção e liberação de verbas orçamentárias também deixa o restante do governo com dúvidas sobre verdadeiro nível da dificuldade fiscal, e se não basta gritar mais alto para conseguir recursos. Em setembro, por exemplo, o governo anunciou o corte de R$ 1,6 bilhão no Orçamento deste ano. Em novembro, decidiu cortar mais um pouco, R$ 486 milhões. Duas semanas depois, em novo ato, ampliou-se o gasto do Orçamento em R$ 2,2 bilhões líquidos. Um ziguezague difícil de compreender.

O fato é que os economistas do governo mais preocupados com a política fiscal e os que são encarregados da execução financeira do Tesouro Nacional estão bastante desconfortáveis com as decisões do presidente. Há quem saliente o risco de o Banco Central ter que atuar, retomando o rigor monetário, caso as contas públicas degringolem.

Se Lula foi ousado e surpreendeu no primeiro mandato, permitindo a execução de metas fiscais e monetárias duras contra toda a pregação do PT, e derrubando a inflação a patamares inéditos na história contemporânea do país, agora ele dá sinais de que mudou. Tomara que ele saiba o que está fazendo.

Claudia Safatle é diretora adjunta de Redação e escreve às sextas-feiras

Claudia Safatle é diretora de redação adjunta e escreve às sextas-feiras

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