Título: Um alerta contra a apreciação cambial
Autor: Luciano Coutinho
Fonte: Valor Econômico, 14/01/2005, Opinião, p. A9

A inadequação do tratamento dado pelo Banco Central ao choque de oferta que provocou significativa pressão inflacionária em 2004 (e.g. impacto da nova sistemática do PIS-COFINS sobre as importações, fortes aumentos dos preços externos do aço e das commodities metálicas e dos preços da cadeia petróleo-petroquímica) levou à fixação de metas de inflação muito ambiciosas para 2005 e 2006 e vem obrigando a autoridade monetária a praticar uma taxa real de juros excessivamente elevada nos últimos meses. Com efeito, o diferencial, observado e projetado, de taxas de juros entre o mercado brasileiro e o mercado mundial de capitais tem se mantido em nível extraordinariamente alto. Esse fato em si já representa um fator poderoso de atração de capitais. Porém, no contexto atual de aposta especulativa quase generalizada contra o dólar - simetricamente de apreciação das demais moedas - o efeito deste diferencial de juros tende a ser magnificado. Vejamos. A fragilidade do dólar é evidente e deriva da posição fortemente deficitária do balanço de pagamentos dos Estados Unidos, posição essa que deve persistir sendo incomodamente negativa nos próximos meses. Movimentos expressivos de depreciação do dólar, particularmente diante de moedas flutuantes, têm sido marcantes nos últimos meses, refletindo a percepção generalizada dos mercados de que a moeda americana tem seus fundamentos debilitados. Neste contexto, os investidores em geral e especialmente os "hedge funds" (que hoje operam um volume estimado em US$ 1,2 trilhão nos mercados cambiais) têm redobrado suas apostas de apreciação adicional do euro, das principais moedas asiáticas e, ainda, na margem, de outras moedas de países em desenvolvimento, com destaque para o real. Com efeito, apesar da má reputação da história monetária brasileira, nas condições atuais o real preenche condições especialmente propícias como moeda candidata a um ciclo de apreciação especulativa. De saída, por força do elevado saldo comercial, a posição da nossa conta de transações correntes com o exterior é significativamente superavitária e deve assim permanecer no futuro próximo. Além deste fator favorável, a força do real é realçada pela férrea e rigorosa execução da política fiscal, absolutamente dentro dos parâmetros comprometidos com o FMI. Acresce, que sob o regime de câmbio flutuante não há mecanismos explícitos e formais que previnam mais apreciação da nossa moeda. Para coroar esta lista de fatores, o já mencionado diferencial de juros oferece um polpudo rendimento fixo aos especuladores, além da expectativa de apreciação da taxa de câmbio. Deve-se supor, portanto, que as pressões pró-apreciação do real ainda persistirão ativas por vários meses - até que o movimento especulativo mundial anti-dólar eventualmente se reverta e provoque, ao contrário, uma onda aguda de depreciação, à medida que as posições especulativas sejam desalavancadas. Qual tem sido a conduta do nosso Banco Central diante dessa onda especulativa? Aparentemente tem sido conservadora e oportunista. Ao jogar de forma excessivamente conservadora (e irrealista) no que toca às metas de inflação, o BC sustenta juros reais exagerados e agrava a especulação. Ao defender a taxa de câmbio de forma muito comedida, adquirindo reservas em volume insuficiente para manter a competitividade das exportações de manufaturados, a autoridade monetária não só demonstra ortodoxia mas deixa transparecer uma conduta oportunista de utilizar a apreciação cambial como vetor de desinflação.

A autonomia do Banco Central, além de depender da responsabilidade fiscal, precisa estar submetida à responsabilidade cambial

Esta opção é traiçoeira: para obter uma convergência um pouco mais rápida às metas de inflação incorre-se no risco de prejudicar seriamente o desempenho da balança comercial. Com efeito, o atual patamar da taxa de câmbio (perto de R$ 2,70/dólar) não assegura rentabilidade suficiente à exportação de produtos manufaturados, especialmente no caso de várias cadeias setoriais que recentemente absorveram significativas pressões de custo de insumos como o aço, metais não-ferrosos, matérias-primas químicas e petroquímicas, energia, etc. A persistência, por vários meses à frente, deste patamar de câmbio apreciado tenderá a produzir efeitos contraproducentes sobre as exportações - parcialmente em 2005 e com maior intensidade em 2006. Do lado das importações e da balança de gastos com viagens internacionais os efeitos negativos certamente aparecerão com mais força e rapidez já ao longo deste ano. Mais graves poderão ser os efeitos deletérios sobre as decisões em curso de investir na criação de nova capacidade exportadora e/ou de expandir operações comerciais no exterior, causando impactos negativos de médio prazo sobre o ritmo de crescimento das exportações. Ao se revelar negligente ou descompromissado com o desempenho futuro da balança comercial, o Banco Central corre o risco de provocar uma mudança de foco das estratégias empresariais que, decididamente, se voltou para o mercado externo após as sucessivas depreciações da taxa de câmbio desde 1999. Um eventual abandono dos objetivos de exportação por parte de parcela expressiva das empresas (que hoje ambicionam aumentar sua presença nos mercados mundiais) custará muito caro ao país, pois interromperá o processo -- que deveria ser absolutamente prioritário - de rápida e progressiva superação da vulnerabilidade externa da economia brasileira. Este é um tema capital para o debate que se travará neste ano a respeito da questão da autonomia do BC. Essa autonomia precisa - necessariamente - ser delimitada tendo em vista os interesses maiores do país, que não se restringem à imprescindível sustentação da estabilidade. Não é aceitável, por exemplo, que a consecução das metas de inflação seja alcançada através da sobrevalorização sistemática da taxa de cambio e da vulnerabilização das contas externas. A história do Plano Real já demonstrou sobejamente quão ilusória e nociva é esta opção. Por isso, a autonomia operacional do BC, além de depender da responsabilidade fiscal, precisa estar submetida a regras de responsabilidade cambial.