Título: Êxito do pacote pode criar armadilha cambial
Autor: Neumann, Denise
Fonte: Valor Econômico, 22/12/2006, Especial, p. A16

O pacote de medidas em gestação no governo tem uma falha que pode se transformar em armadilha embutida. Se tudo der certo - o ajuste fiscal for bem-sucedido e os investimentos deslancharem - a percepção dos investidores sobre o Brasil vai melhorar ainda mais e o país pode atrair mais capitais. Como conseqüência, a taxa de câmbio voltaria a se apreciar, dificultando ainda mais a competitividade de um grande número de setores industriais. O alerta é do professor Luciano Coutinho, sócio-diretor da LCA Consultores.

Coutinho aprova o conjunto de medidas em discussão, mas aponta como grande falha a desarticulação entre o que o governo está considerando como sua política de investimento e crescimento e a política macroeconômica. Tanto no governo Fernando Henrique Cardoso como no primeiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva, elas foram antagônicas. E o "pacote" não sugere mudanças nesta dicotomia. "A chave é o investimento, mas falta uma estratégia de desenvolvimento que vá além da política fiscal, do investimento público, e inclua também política de juros, câmbio, dívida pública."

Coutinho - que esteve reunido e expôs várias dessas idéias a Lula e à ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff - defende que, junto com a adoção de uma política de ajuste fiscal, que reduza o ritmo de crescimento dos gastos correntes (dos 6,5% médios dos últimos anos para um percentual próximo a 3%), o governo aumente a intervenção no mercado de câmbio e adote uma política tributária que minimize os efeitos desta taxa sobre os setores intensivos em mão-de-obra e que utilizam matéria prima local. Sem medidas desse tipo, diz, "vamos caminhar, de novo, para um processo de esvaziamento da estrutura industrial do país."

Para Coutinho, energia é uma das áreas que mais merecem atenção e a que mais preocupa. Para ele, colocar em marcha a licitação das usinas do Madeira no início de 2007 é crucial. E será um teste para provar que amadureceu no governo a percepção da urgência de viabilizar projetos-chave na área de infra-estrutura. Sem estar convencido de que o governo fará sua parte, avalia Coutinho, o setor privado não vai deslanchar seus investimentos e nem contribuir para os projetos de infra-estrutura. A seguir, os principais trechos da entrevista concedida na terça-feira.

Valor: O que falta, de fato, para voltarmos a crescer?

Luciano Coutinho: O fundamental é aumentar a taxa de investimento. Para crescer com sustentação e sem ameaça de estrangulamentos inflacionários, a chave é o aumento do investimento. Ele tem que sair de 20% para 25% do PIB, não da noite para o dia, mas em etapas. Para isso o governo precisa engendrar um conjunto de ações, começando com sua própria capacidade de investimento, e complementando com um conjunto de medidas que viabilize o engajamento do setor privado em projetos fundamentais, que geram confiança na sustentação do crescimento. Nesse momento, eles estão na área de energia e logística.

Valor: Por que, até agora, não deslanchou o investimento? Há problema de financiamento ou outros?

Coutinho: Na área de infra-estrutura, a decisão e o deslanche de investimentos exigem mais do que oferta de financiamento, exigem criação de condições mitigadoras de risco e uma série de condições regulatórias e autorizações ambientais para que os projetos possam ser licitados, através de concessões ou outros mecanismos, de maneira a atrair o investimento privado.

Valor: Quais são os projetos importantes na infra-estrutura?

Coutinho: Na área de energia, os projetos do rio Madeira constituem um empreendimento de grande escala, quase US$ 11 bilhões, o que é emblemático desta sinalização. É um project finance de grande envergadura, em condições de risco naturalmente altas por se tratar de um projeto bastante distante e sujeito, pelo seu porte, a vários tipos de risco: de performance na construção, de desempenho etc. Então, é um teste muito relevante. Se o governo e o Ministério de Minas e Energia conseguirem licitar esse projeto com sucesso, todos os outros serão mais fáceis. Esse é um projeto muito difícil, que demanda muita consistência na definição dos parâmetros de edital, de equilíbrio das condições e interesses porque, por outro lado, é preciso proteger o usuário. É muito fácil licitar maximizando a taxa de retorno para o investidor e negligenciando o valor das tarifas que serão cobradas. Não é fácil encontrar a linha justa entre a remuneração do capital privado, a mitigação de riscos e a busca de tarifas módicas para viabilizar empreendimentos desta escala. Mas esse é um processo que já amadureceu no governo e as condições estão preparadas para que o governo possa colocar um conjunto grande de projetos em licitação, de maneira a criar a confiança de que os investimentos em infra-estrutura irão ocorrer.

Valor: Mas o que mudou? O que daria confiança para o investidor de que estes 50 projetos que o governo está listando desta vez não serão interrompidos na Justiça ou por falta de licença ambiental?

Coutinho: Eu não conheço a lista dos projetos, mas pressuponho que eles terão como ponto de partida o licenciamento ambiental concluído. E, se ocorrerem impugnações, o governo tem que estar preparado para neutralizar esse risco da forma mais rápida possível. E até, no limite, acomodar mudanças dentro dos editais, para que o setor privado não seja punido por riscos que escaparam completamente a sua gestão. Um mecanismo como a súmula vinculante ajudaria muito. Assim, se um projeto tem todo o licenciamento ambiental aprovado em todas as instâncias, ele não poderia mais ser objeto de obstrução. Esses mecanismos de mitigação de risco devem ser desenvolvidos, porque sem proteção o setor privado embute o risco nos projetos e isso resulta em tarifas mais altas. Então, a defesa de uma determinada causa pode resultar em prejuízo de toda coletividade. Não estou querendo dispensar o licenciamento ambiental. Ele deve ser feito com seriedade, mas, uma vez atingido, não deve mais servir de pretexto para impedir uma obra.

Valor: Ás áreas mais críticas são energia e logística, então?

Coutinho: Em energia há dúvida sobre a sustentação da oferta a partir de 2009, em função de vários fatores, como a frustração do gás argentino, da possível ampliação da oferta do gás boliviano, a necessidade de acelerar o programa de gás do Brasil. Ao mesmo tempo, os investimentos no setor de hidreletricidade estão no limite para que aconteçam. Estamos diante de um cronograma muito apertado para execução dos projetos, tanto em gás como em hidreletricidade, então é crucial que os projetos sejam iniciados em 2007 e executados na velocidade prevista. As dúvidas maiores quanto à oferta estão para além de 2009, mas a pergunta do setor privado é se teremos energia para sustentar o crescimento. Há investimentos que precisam ocorrer de forma inequívoca a partir de 2007.

Valor: O setor privado está mais preocupado com essa segurança para investir ou com a evolução das contas públicas?

Coutinho: Não. É outro capítulo. Energia e logística são fundamentais, especialmente em setores que são grandes consumidores deste insumo, como siderurgia, petroquímica, mineração. As contas públicas têm ligação com isso, porque a capacidade de investimento do governo está constrangida com o crescimento das despesas correntes e há um consenso de que é preciso conter a velocidade desta expansão, para gerar mais capacidade própria de investimento da União e dos Estados. Mas há um aspecto relevante. O robustecimento fiscal da União é fundamental para melhorar o perfil da dívida mobiliária e acelerar uma queda de juros futura, que, por sua vez, tem efeito virtuoso sobre as contas públicas. É possível zerar o déficit nominal em 2010 e associar a essa expectativa uma determinada curva de juros nos próximos anos. Mas posso ter uma expectativa mais ambiciosa de zerar o déficit nominal mais cedo, em fins de 2008 ou até o início de 2009. Posso ganhar dois anos nesse cronograma desde que faça uma política fiscal mais rígida em termos de contenção de gasto corrente. O que ganho com isso? Ganho a perspectiva de curva de queda de risco mais rápida.

Valor: O sr. acha isso possível ou está falando teoricamente na possibilidade de zerar o déficit nominal antes de 2010?

Coutinho: Eu acho possível olhando os números. A questão é que essa política fiscal mais dura é contracionista do ponto de vista do crescimento. Para que ele não seja afetado, seria preciso que o setor privado se sentisse motivado a investir mais, ou seja que eu estivesse trocando gasto público por gasto privado. A hipótese que eu acho defensável é que uma aceleração do ritmo da queda de juros - para obter condições de investment grade mais cedo, ter uma trajetória de queda da relação dívida/PIB mais rápida e ter uma melhoria da qualidade da dívida pública mais rápida - esse conjunto de condições tenderia a ter um efeito positivo sobre a intenção de investimento do setor privado. Quanto mais cedo for a visualizada expectativa de que a Selic real fique abaixo de 6% , mais pujante tende a ser o investimento no setor imobiliário.

Valor: A premissa desse cenário é cortar gasto corrente ou contê-lo já seria suficiente?

Coutinho: A premissa é que a taxa de crescimento do gasto corrente, que tem ficado em média em 6,5%, bem acima do PIB - e o grosso disso é gasto previdenciário - possa ser reduzida a um nível inferior a 3%. Isso cria uma diferença entre a taxa de crescimento do PIB e a do gasto corrente, que permite abrir um espaço fiscal crescente. É pouco realista imaginar a factibilidade política de fazer cortes no volume absoluto do gasto, mas é possível conter a velocidade de expansão do gasto.

Valor: Mas o sr. conteria qual despesa?

Coutinho: É uma questão de escolha política. Se eu olhar a Previdência, posso ter várias escolhas: um crescimento mais lento do salário mínimo, ou a desvinculação do piso previdenciário. Outro aspecto é verificar critérios do auxílio-doença. Tudo sem esquecer que há ganhos possíveis na eficiência da gestão. Se olhar os gastos de pessoal do governo, teria outra agenda, como estabelecer uma política para reajustes. Em todas as áreas há uma combinação de ganhos de gestão e ganhos com mudanças de regras. Mas a necessidade de conter a expansão do gasto está dada e deveria ser perseguida pelo governo na medida em que o bônus que redunda disso para o clima de expectativas do setor privado, de melhoria do perfil da dívida, de redução da curva de juros, é um prêmio tão suculento que vale a pena o sacrifício.

Valor: Diante desse quadro, qual a perspectiva de crescimento para 2007 e nos outros anos, especialmente para a indústria, ameaçada pela concorrência dos importados?

-------------------------------------------------------------------------------- Posso ter expectativa mais ambiciosa, de zerar o déficit nominal mais cedo, em fins de 2008 ou no início de 2009" --------------------------------------------------------------------------------

Coutinho: Há um ponto crucial, pouco falado, que é a taxa de câmbio. Há aqui uma armadilha montada. Suponha que o governo faça todo dever de casa e tenha um bem-sucedido programa de ajuste fiscal e ele também resulte em expressivo programa de investimentos privados em infra-estrutura. O que isso vai provocar? Os fundamentos da economia brasileira se tornarão ainda melhores e, portanto, a percepção dos mercados financeiros será de que o Brasil se tornou uma opção ainda mais segura para os investimentos. E como - apesar de estar em queda - o diferencial de juros interno e externo ainda é alto, isso pode resultar em mais apreciação cambial. Então, qual o risco de fazer todo um programa virtuoso e deixar a taxa de câmbio permanecer apreciada? É repetir uma contribuição negativa do setor externo para o PIB. Em 2006, a apreciação do câmbio removeu 1,2 ponto percentual do PIB, pois a demanda doméstica cresceu 4,1% e o PIB vai ficar em 2,8%, 2,9%. O que fez essa diferença entre demanda e oferta? Dois componentes: consumo de estoque ou aumento de importações; No nosso caso foi o aumento das importações, que vai continuar em 2007. Há uma preocupante aceleração da importação de bens de consumo e de matérias primas e partes e peças e bens intermediários. Isso está substituindo produção doméstica e removendo crescimento do PIB. E isso amesquinha as fronteiras de investimento.

Valor: O câmbio já prejudica setores competitivos?

Coutinho: Essa taxa de câmbio inviabiliza vários setores que têm competência, mas que com essa combinação de juros e câmbio não sobrevivem. Defendo que o governo pense em regimes de tratamento tributário específicos para setores altamente intensivos em mão-de-obra, que usam matéria-prima local. Penso nos complexos de produção de vestuário, calçados e móveis também. Eles geram emprego e o tratamento tributário mitiga essas perdas. Por que não criar um conceito de comunidade exportadora? Por que não pensar políticas que possam preservar a competitividade e, ao mesmo tempo, ir corrigindo a taxa de câmbio? Enquanto você não tem taxa competitiva, você trata de defender esses setores.

Valor: Como corrigir o câmbio?

Coutinho: O BC deve ser orientado a continuar com a política de intervenções no mercado de câmbio de maneira a, suave mas persistentemente, melhorar a competitividade da taxa.

Valor: Mas o BC já fez isso. Os resultados não foram fracos?

Coutinho: Fez, mas ele comprou US$ 30 bilhões.

Valor: Mas isso não é bastante?

Coutinho: Se ele não tivesse comprado US$ 30 bilhões nos últimos 12 meses, o câmbio estaria em R$ 1,80. Como comprou, conseguiu estabilizar o câmbio em torno de R$ 2,15. Se tivesse comprado US$ 40 bilhões, teríamos um custo adicional fiscal para comprar mais US$ 10 bilhões, mas possivelmente o câmbio teria estacionado em torno de R$ 2,20, R$ 2,25. Seria mais saudável. Existe um custo fiscal alto, mas ele tem que ser ponderado com o custo econômico e social do país. Aqui temos um custo que pode ser medido em termos de emprego, exportações, importações e PIB. Enquanto não corrigirmos a distorção criada pelos juros, que bate no câmbio, seria importante neutralizar essa distorção com intervenção cambial ou com políticas que possam minimizar seus impactos sobre a competitividade manufatureira do país. Ou vamos caminhar, de novo, para um processo de esvaziamento da estrutura industrial do país. Se estamos em contexto do esvaziamento da estrutura industrial, não posso imaginar um grande ciclo de investimento privado. Então, para que feche um círculo de investimento, além dos investimentos em infra-estrutura, que dêem segurança ao setor privado, preciso melhorar a taxa de câmbio, de tal maneira que o investimento pró-exportador e o da indústria manufatureira também se generalizem, senão passo a ter perdas para o exterior. Preciso criar condições de política macroeconômica que permitam articular um ciclo organizado de investimento.

Valor: Qual taxa de câmbio daria competitividade à indústria?

Coutinho: Ela varia muito. Tem setores que com R$ 2,20 estão bem, mas outros precisam de R$ 2,40, o setor calçadista precisa de R$ 2,60. É difícil precisar, mas eu diria que precisaríamos caminhar para uma taxa de R$ 2,55, mas isso em dois anos. Mas é difícil dar números.

Valor: O que falta então?

Coutinho: Se cobra do governo que ele seja capaz de colocar um programa fiscal, criar condições para investimentos em infra-estrutura, mas eu sinto também que falta no setor privado brasileiro, na elite empresarial, capacidade de formular um projeto para o país.

Valor: Mas não é ao governo que cabe essa formulação?

Coutinho: Não só ao governo. Onde estão os partidos políticos? E a grande elite empresarial, o que quer para o país?

Valor: Entre os sinais já emitidos pelo governo, o que falta para que o pacote atualmente em estudo faça o país crescer?

Coutinho: Falta uma estratégia de desenvolvimento que vá além da política fiscal, do investimento público, inclua também a política de juros, câmbio, dívida pública. Falta uma estratégia que acople de forma definitiva a política macro com a de crescimento.

Valor: Até agora elas estão separadas, é isso?

Coutinho: Até agora elas foram antagônicas. No governo Fernando Henrique, a política monetária e também a fiscal travaram o crescimento. No governo Lula, ocorreu a melhoria fantástica das contas externas, que permitiu superar a vulnerabilidade externa em três anos, e um avanço adicional da política fiscal, porque se conteve o aumento da relação dívida/PIB, mas não se deu o passo definitivo, que é tornar compatível a política macro, fiscal, monetária, e a política de investimento. Precisamos acoplar tudo isso, precisamos de um ganho de qualidade na política fiscal, no investimento, e minorar os efeitos negativos da apreciação cambial derivada do juro ainda alto. E isso pode ser feito sem ameaçar a estabilidade de preços.

Valor: O governo está vendo essa dicotomia, essa falha, ou não?

Coutinho: Há compreensão dentro do governo, pelo menos de algumas pessoas. Talvez o governo não tenha conseguido comunicar tudo, mas a compreensão existe.

Valor: Mas ela não aparece nas falas mais recentes dos ministros, a taxa de câmbio, por exemplo, está fora do debate...

Coutinho: Existem contradições, mas não tenho dúvida de que em muitas cabeças importantes do governo há essa compreensão. Talvez não tenha se cristalizado em orientação hegemônica, mas tenho esperanças de que venha a se tornar hegemônica.