Título: Favorito no Paraguai, bispo prega guinada à esquerda
Autor: Rocha, Janes
Fonte: Valor Econômico, 21/12/2006, Especial, p. A12

Ele é um homem simples, de fala mansa, mas firme. No dia 14 de dezembro, às 9h da manhã, Monsenhor Fernando Lugo parecia confortável, apesar do calor escaldante da capital paraguaia, vestindo calça social escura e camisa cor de gelo, de manga comprida, sem gravata. Sua figura se destacava em seus quase 1,80 m de altura, pele clara, cabelos grisalhos, feições de seus pais e avós italianos. Mais de 300 pessoas o ouviam, na cerimônia de entrega de títulos de conclusão do segundo grau na capela do Colégio Verbo Divino, num bairro de classe média de Assunção.

Além de diretor do Colégio, Lugo, 55 anos, bispo emérito de San Pedro, uma das regiões mais pobres do Paraguai, é também o favorito nas pesquisas para presidente do país. Segundo pesquisa encomendada pelo principal jornal paraguaio, o "ABC Color", à empresa First Analisis Y Estúdios, Lugo e seu movimento Resistência Cidadã têm 42,4% das intenções de voto, seguido do atual presidente, Nicanor Duarte Frutos, do Partido Colorado, com 37,3%. Na pesquisa, divulgada no dia 12 de dezembro, foram entrevistadas mil pessoas em todo país no início do mês.

Para concorrer à Presidência, Lugo terá que abandonar a batina, já que o Vaticano não o autorizou a entrar na corrida eleitoral. Ele ainda não anunciou oficialmente se fica ou sai da Igreja - prometeu divulgar sua decisão no dia do Natal - mas sua postura tem sido a de um candidato assumido. Seu grupo, o Resistência Cidadã, aglutina partidos políticos de esquerda, centrais sindicais, organizações sociais, camponesas e indígenas. Lugo é visto hoje no Paraguai como o único com chances de ocupar o espaço político dominado há 60 anos pelo Partido Colorado.

"Lugo está à frente de uma mudança inédita no Paraguai, em que a sociedade, até então apática frente à classe política, finalmente está reagindo e pedindo respostas a suas demandas", analisa o cientista político Alejandro Vial Saavedra, da Fundação Centro de Informação e Recursos para o Desenvolvimento (Cird).

Ainda falta um ano e cinco meses para as eleições presidenciais no Paraguai, mas o clima político no país é de campanha a todo vapor, com vários candidatos potenciais se lançando por diversos partidos. Tudo isso porque o atual presidente, Nicanor Duarte Frutos, que assumiu em agosto de 2003, acirrou os ânimos ao propor a reeleição, proibida pela Constituição.

Quando percebeu que não teria maioria no Congresso para aprovar uma emenda à Constituição que lhe permitisse concorrer a um segundo mandato, Duarte começou a articular uma saída indireta e nebulosa, pedindo à Justiça autorização para acumular a Presidência da República com a de seu partido.

Os juízes aceitaram, e a reação foi imediata. Milhares de pessoas foram às ruas em março, protestar contra a decisão da Justiça. À frente das manifestações estava monsenhor Fernando Lugo. Até então conhecido por sua atuação como religioso, pelo apoio às comunidades mais pobres. Naquele momento, diz Viali Saavedra, Lugo encarnou o desejo de mudança dessas pessoas.

"A oposição já tinha vontade de buscar uma concertação [coalizão], mas o presidente Duarte precipitou as coisas ao buscar sua reeleição", disse o senador Carlos Mateo Balmelli, do Partido Liberal Radical, um dos agrupamentos dissidentes do Partido Colorado. Balmelli também quer ser candidato a presidente por seu partido, só que na pesquisa ABC Color/First, ele aparece em último lugar, com só 1,9% das intenções de voto.

-------------------------------------------------------------------------------- O ambiente regional é favorável (...) a uma mudança que nos transforme em um país muito mais equitativo" --------------------------------------------------------------------------------

"Ele sempre atuou na luta contra a pobreza, uma luta justa, e é o único que chega à maioria do povo", comenta Gregoria Pereira, 54 anos, que estava ali na igreja assistindo à formatura de uma sobrinha. Comerciante, dona de uma loja de auto-peças para automóveis Mercedes-Benz, Gregoria disse que acredita que o religioso possa melhorar o país. Depois pára, hesita uns segundos e deixa escapar um fiozinho da desconfiança que está presente na classe média do país quanto a Lugo: "Bem, ele não pode ser um mentiroso. É um sacerdote. Uma pessoa humilde".

Já Leonardo Barrios, 44 anos, gerente da área comercial de uma emissora de TV, não tem tanta fé. "Vamos ver se vai ser um bom presidente. Oxalá seja capaz de mudar alguma coisa, desde que não seja um populista, daqueles que dão o peixe e não ensinam a pescar", disse Barrios, enquanto assistia à formatura de sua filha no Colégio Verbo Divino. "Ele é a grande esperança do povo, todos o querem candidato", comenta o advogado Martin Almada, conhecido ativista de direitos humanos e obras sociais.

Até o mês passado, Lugo dizia que não poderia sair candidato por seus compromissos com a Igreja. Aparentemente, mudou de idéia. "Nos últimos meses houve novos acontecimentos, novos eventos. Por exemplo, há duas semanas um grupo de movimentos sociais me entregou uma carta com 3,6 mil assinaturas pedindo-me que eu renuncie ao meu ofício religioso e entre para competir nas eleições. Este domingo, outro grupo mais amplo em nível nacional me entregou uma carta com mais de 100 mil assinaturas. Tudo isso ajudou a uma decisão que eu tomei com consciência e que comunicarei em 25 de dezembro", disse o bispo.

Ele afirma não estar surpreso com as pesquisas. "Não é a primeira. Várias pesquisas, de várias agências me colocam como primeiro nas preferências de voto, especialmente pela gente do campo e um grande setor da cidade", avaliava ele em entrevista ao Valor, logo depois da cerimônia escolar em que foi amplamente aplaudido e assediado para tirar fotos com os alunos e seus familiares. "Talvez isso tenha relação com o fato de que meu trabalho sempre esteve dirigido à gente do campo, camponeses em San Pedro e outros departamentos."

Um dos países mais pobres do mundo, o Paraguai é mais conhecido por ser receptor de automóveis roubados no Brasil, centro de contrabando das mais diversas mercadorias, além de estar sob suspeita dos Estados Unidos de ser abrigo de terroristas graças ao livre trânsito de traficantes de drogas, armas e lavadores de dinheiro sujo.

É possível mudar essa realidade? Lugo afirma que sim. "Não se pode propor transformar o Paraguai numa Suíça, o país tem muitos problemas, sociais, econômicos, de ética, de moral, indigência. Há um crescimento econômico não equilibrado; há a corrupção, somos conhecidos como um país quase de piratas, de ilegalidade."

Porém, acrescenta, "algumas coisas podem ser mudadas, tenho esperança, se formatarmos um governo diferente, onde a capacidade e a ética estejam em primeiro lugar, com um programa econômico de crescimento equitativo, onde também se possa incluir, e não excluir, os grandes setores da vida do país". Lugo também conta com a vantagem de ser um país pequeno, de apenas 6 milhões de habitantes. "É possível superar as divergências ideológicas, religiosas, de postura social. É possível convergir em alguns pontos e transformar esses pontos em desenvolvimento."

Lugo acha que pode se repetir no Paraguai os giros políticos à esquerda experimentados por países como Bolívia, Equador, Venezuela, Argentina e Brasil. Para isso, seria necessário tomar o espaço do Partido Colorado. "Creio que o ambiente regional é favorável a que um partido hegemônico possa dar espaço a uma nova experiência, a uma mudança no país. Não ao país sonhado, mas a uma transformação que nos permita direcionar as mudanças desejadas para um país muito mais equitativo, onde setores menos favorecidos participem mais."

O cientista político Viali Saavedra concorda: "Poderia acontecer aqui algo similar ao que ocorreu na Bolívia, com Evo Morales, com a diferença de que não temos no Paraguai as divisões étnicas presentes na Bolívia".