Título: Procuradoria vê ilegalidade em um terço das doações
Autor: Junqueira, Caio
Fonte: Valor Econômico, 27/12/2006, Política, p. A8

Um terço das pessoas físicas e um quinto das pessoas jurídicas que contribuíram para campanhas eleitorais vitoriosas em 2006 burlaram a legislação e ultrapassaram os limites legais para doação. Os números decorrem de um levantamento feito pela Procuradoria Regional Eleitoral der São Paulo nas contas dos paulistas eleitos em todos os cargos disputados.

O intuito do levantamento era o de verificar se houvera desrespeito aos tetos de doação de até 10% do rendimento declarado no Imposto de Renda do ano anterior, para pessoas físicas, e de até 2% do faturamento do ano anterior, em se tratando de pessoas jurídicas.

Para fazer a checagem, a procuradoria selecionou as pessoas físicas que doaram acima de R$ 20 mil e jurídicas que doaram acima de R$ 100 mil e verificou suas situações fiscais. Para tanto, contou com a ajuda da Receita Federal, que no início do ano firmou um convênio com o Tribunal Superior Eleitoral justamente para fiscalizar as contas dos candidatos. Além desses critérios objetivos, foram utilizados outros - aleatórios. Por exemplo, foram descartadas da análise empresas sabidamente com grande capacidade financeira.

O resultado encontrado pela procuradoria paulista aponta que, entre as 50 pessoas físicas verificadas, 17 (34%) violaram a lei. Entre as empresas, de um grupo de 61 que se enquadraram no corte, 12 (19,6%) fizeram doações acima do limite legal.

"Há o caso de uma empresa que doou 17% do faturamento do ano anterior. E de pessoas físicas que doaram mais do que o rendimento bruto declarado no Imposto de Renda", afirma Mário Bonsaglia, procurador-regional eleitoral de São Paulo, que já encaminhou os pedidos de apuração à Receita Federal.

"Trabalhamos com três hipóteses para essas doações excessivas: lavagem de dinheiro, sonegação de impostos ou mesmo generosidade demasiada", diz. A punição para essas infrações eleitorais é uma multa, avaliada entre cinco e dez vezes o excesso havido. A maior delas pedida até agora foi de uma empresa que doou R$ 4,8 milhões acima do teto legal. Em decorrência disso, poderá ter de desembolsar entre R$ 24 milhões e R$ 48 milhões.

A empresa infratora também corre o risco de ficar proibida de participar de licitações públicas e de celebrar contratos com o poder público por de cinco anos. Para os eleitos, a punição pode ser a cassação do diploma, medida já requerida para dois deles. "Pedimos a cassação de dois eleitos que, pelas circunstâncias, pareciam ter a consciência de que recebiam doações fora dos limites legais", afirma Bonsaglia.

Com a operação, a procuradoria pretende ver punidos as fontes que abasteceram sobremaneira candidatos, tornando a situação de embate eleitoral claramente favorável a quem recebeu esses recursos. No cerne, pretende punir não só o beneficiado com os recursos, mas quem desequilibra o jogo por meio do fornecimento de recursos financeiros em demasia. "A influência do poder econômico nas eleições é muito grande. Empresas fazem grandes doações. Não há impedimentos para a utilização de recursos próprios, fazendo com que os candidatos mais ricos levem vantagem. O que deveria ser competição acaba ficando uma disputa desigual", diz o procurador paulista.

-------------------------------------------------------------------------------- Uma empresa que doou R$ 4,8 milhões acima do teto legal pode ter que pagar multa de até dez vezes esse valor --------------------------------------------------------------------------------

Embora ilegais, as doações acima do limite legal passaram ao largo nos julgamentos das contas nos tribunais, que, apertados pelos prazos a serem cumpridos a fim de que os eleitos fossem diplomados, ainda não dispunham dessas informações. Ocorre que, uma vez com os dados em mãos, o cenário final dos julgamentos suscita dúvidas quanto à efetiva probabilidade de reprovação de contas e conseqüente impedimento da diplomação e posse. Isso porque muitas irregularidades em contas foram constatadas pelas perícias técnicas da Justiça e do Ministério Público, o que não foi óbice para que as contas fossem aprovadas.

Afora problemas que revelaram indícios da ocorrência de caixa 2, como recibos eleitorais imprecisos e incoerências nas contas bancárias de campanha, o que acabou por gerar mais debate foram as doações das fontes vedadas, em especial das concessionárias de serviços públicos e, mais ainda, de empresas que, apesar de não terem concessão, são ligadas a empresas que tenham.

É o caso da Caemi Mineração, que tem participação na Minerações Brasileiras Reunidas, que, por sua vez, participa do capital da MRS Logística, detentora da concessão da malha ferroviária que serve à região Sudeste. Além disso, faz parte do grupo Companhia Vale do Rio Doce, que detém a concessão de ferrovias. A Caemi doou R$ 1,8 milhão à campanha do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e R$ 700 mil a do governador eleito de São Paulo, José Serra (PSDB).

Essas contribuições foram usadas nos argumentos pela desaprovação das contas de ambos, mas tanto o TSE quanto o TRE-SP consideraram que a Caemi seria fonte proibida somente se fosse a titular da concessão. Avaliaram que seria uma inovação muito grande vedá-las agora, já que em outras eleições casos semelhantes foram considerados normais e sequer levantaram grandes debates.

O que de fato é provocado tanto nas doações acima dos limites legais quanto nas possíveis fontes vedadas é até que ponto é democraticamente viável o desequilíbrio financeiro entre candidatos com mais e menos recursos e ainda os limites entre o interesse público e privado no jogo eleitoral. Do lado da Justiça, são crescentes as opiniões de que a força do poder econômico nas eleições deve ser coibida. Em seu voto pró-aprovação das contas de Serra, o juiz do TRE paulista Eduardo Muylaert afirmou que, se bem analisada, a vedação às concessionárias também deveria ser estendida a bancos e empreiteiras.

"Essas empresas são os grandes contratantes do poder público. Se queremos uma eleição sem nenhuma interferência do poder econômico, quem contrata com o governo e tem, portanto, interesses com o governo, não deveria contribuir para a campanha. Mas continuamos alimentando esse círculo vicioso. Eles precisam ajudar os governantes a se reeleger para que o governante os continue contratando", afirmou, em entrevista ao Valor. Para essa eleição, porém, ele considera correto o posicionamento do tribunal. "Seria uma arbitrariedade muito grande. Nas eleições passadas houve inúmeras doações desse tipo sem proibição."

A invocação dos entendimentos recentes dos tribunais se alia ao princípio da insignificância como justificativa para as aprovações. Por meio dele, entende-se que a ocorrência de pequenas irregularidades não compromete a totalidade das contas. E se explica a razão por que, dos 70 deputados federais eleitos por São Paulo, pelo menos 50 tiveram pareceres contrários por técnicos do TRE e, a princípio, apenas 4 deles tiveram as contas rejeitadas.

"O técnico faz uma análise contábil. Se houver qualquer irregularidade, ele tem a obrigação de apontá-la. Quando isso chega ao juiz, precisamos analisar à luz da lógica jurídica e à luz dos precedentes. Não estamos julgando estritamente a irregularidade, mas o balanço da campanha. Não podemos confundir a grande fraude com um erro contábil de pequena monta", diz Muylaert, que indica como principal problema a falha elaboração das lei.

"Quando interpretamos, consideramos se a legislação é clara e explícita, e algumas vezes ela não é. O legislador com freqüência estabelece regras com brechas. Há muitas lacunas na legislação, uma série de imperfeições na lei eleitoral que o juiz na hora em que vai julgar percebe e aponta, mas a correção efetiva depende da mudança da lei e às vezes o legislador é muito brando. Ainda assim, acho que a saída é essa: a cada eleição discutir quais são as falhas do sistema e ver se o legislado se sensibiliza."