Título: Sobre déspotas esclarecidos e ditadores
Autor: Lima, Luiz Antonio de Oliveira
Fonte: Valor Econômico, 27/12/2006, Opinião, p. A11

Como era de se esperar a morte do ex-ditador chileno Augusto Pinochet provocou manifestações de repúdio absoluto aos seus métodos de governo, como também manifestações um pouco reticentes daqueles, que embora aceitando que foi um ditador cruel, ressalvaram sua contribuição para o estado atual da economia chilena ao se colocar como pioneiro do neoliberalismo no seu país bem como na América Latina. Até aqui, tudo bem, embora se possa discordar frontalmente da idéia de que o bom estado da economia do Chile, como suficientemente discutido em vários artigos recentes veiculados na imprensa, tenha decorrido da aplicação daquele modelo econômico.

O que causou grande estranheza, no entanto, foi um artigo publicado em um jornal paulista, de autoria de um conhecido economista e professor universitário afirmando que Pinochet pode ser visto como um "déspota esclarecido". Descartando a possibilidade de que tal afirmação possa ser considerada uma piada de mau gosto, ela se constitue em uma distorção histórica e uma enorme injustiça contra aqueles que a historiografia moderna convencionou chamar de "déspotas esclarecidos", quando comparados com a figura sombria e medíocre em todos os demais sentidos do ex-ditador chileno. Assim, para relembrar um pouco da história da formação das nações do ocidente moderno e refrescar a memória daquele articulista vale a pena recordar o que foi o "despotismo esclarecido".

Este conceito foi usado por Diderot para identificar um ideal partilhado por muitos monarcas europeus de que através de uma ação autoritária pudessem por em prática a reforma de seus Estados, baseando-se no ideal da filosofia iluminista, que opunha a razão à superstição, à ignorância e ao fanatismo político e religioso, eliminando os obstáculos artificiais à atividade econômica, ao livre pensamento e à censura aos livros e à imprensa. Assim, na Áustria, Carlos VI e seus sucessores aliaram-se aos protestantes contra a França e seu fundamentalismo católico e na Holanda austríaca apoiaram os elementos inovadores e progressistas da nobreza que se opunham à velha aristocracia e ao clero. Tal política, continuada por sua filha Maria Tereza e por seu filho Jose II, glorificava ainda o progresso nas artes e nas ciências, atraindo católicos e protestantes progressistas que desprezavam a visão medieval do clero tradicional. A consolidação dessa dinastia contribuiu de forma decisiva para a criação do Estado austríaco.

Talvez o mais famoso dos absolutistas esclarecidos tenha sido Frederico II, o Grande, da Prússia, que iniciou uma política de tolerância religiosa, atraindo para seu país refugiados protestantes franceses que tinham conhecimento das artes da manufatura e do comércio, para estimular a economia bem como intelectuais dissidentes como Voltaire, que durante um bom tempo foi conselheiro de Frederico. Apesar do favorecimento aos junkers e ao exército, a dinastia dos Hohenzobern, à qual pertencia Frederico, conseguiu criar um estado viável que sobreviveu como monarquia até a Primeira Guerra Mundial.

-------------------------------------------------------------------------------- A distância entre a ditadura de Pinochet e os déspotas é ainda maior do que a mediocridade dos "Chicago Boys" em relação à genialidade dos iluministas --------------------------------------------------------------------------------

Ainda no século XVIII, a Rússia passou a participar do sistema das nações européias, mediante a ação de Pedro I e seus estímulos a industrialização e à diplomacia. Catarina, a Grande, sua continuadora, sob os conselhos de Diderot, adotou políticas capazes de exprimir sua visão iluminista, promulgou um sistema educacional secular e buscou sob todas as circunstâncias estimular a industrialização russa e o seu crescimento como nação.

Assim, apesar de todas as contradições do despotismo esclarecido - Frederico II não conseguiu vencer a resistência da aristocracia para eliminar a servidão na Prússia e teve que voltar atrás, como Jose II, em relação a liberdade de imprensa por pressão do exército. É inegável que os "déspotas esclarecidos" puderam usar a visão iluminista para fortalecer os Estados da Europa Central e Oriental em detrimento do poder das elites locais que até o século XVIII exerceram sua autoridade arbitrária sem qualquer tipo de oposição.

Ora argumentar que Augusto Pinochet não era exatamente um iluminista seria perda de tempo e espaço. De outro lado, apenas para lembrar as conseqüências da ação de Pinochet para a economia chilena, que mesmo que fosse positiva não desculparia as atrocidades cometidas, deve-se lembrar que descontada a louvação dos neoliberais melancólicos, ela foi negativa. Entre 1972 e 1983 o PIB per capita decresceu à taxa de 1,1% ao ano. A sua "revolução liberal" orientada pelos "Chicago-boys" explicam a razão disto. As mudanças decorrentes de sua liberalização dos mercados encolheu todo o setor industrial, voltado a substituição de importações, através de liquidações e da desintegração vertical; os setores de produção de bens duráveis e bens de vestuário que sobreviveram só o conseguiram à custa de um aumento de sua dependência de importações, transformando-se em simples firmas montadoras, maquiladoras ou empresas de marketing. Ao contrário, o setor de processamento de recursos naturais cresceu e aprofundou sua integração vertical. Mesmo, tal reestruturação, se dando sob condições de crédito externo ultrafavoráveis, a conseqüência foi uma queda do emprego industrial e do valor adicionado pela indústria; a participação do emprego industrial caindo de 22% entre 1974 e 1981, enquanto o desemprego urbano que foi em média de 6% nos anos 60 esteve acima de 15% nos anos 70, sendo que a recuperação da economia chilena se dá a partir de 1982 quando as várias condições impostas pela reforma neoliberal deixaram de vigorar.

Assim pode-se concluir que a distância entre a ditadura de Pinochet e o que fizeram os "déspotas esclarecidos" é maior ainda que a distância entre a mediocridade dos "Chicago Boys" e a genialidade dos grandes iluministas que, como Voltaire e Diderot, foram conselheiros dos governos absolutistas do século XVIII.

Luiz Antonio de Oliveira Lima é professor de Economia da Escola de Administração de empresas de São Paulo (FGV). Suas opiniões não correspondem necessariamente as dessa instituição.